terça-feira, maio 29, 2007

O cego

o cego sentiu-se observado
e baixou os olhos na tentativa frustrada
de "ver" alguém.
o quadro escuro no qual se reflecte todos os dias
manteve-se no mesmo lugar da parede,
com a mesma cor, com o mesmo cheiro.
continuou a andar e deparou-se com uma parede. parou!
escuta o vento e tenta cheirá-lo, trespassá-lo, sentir...
como quem vê com olhos de ver, com algum amor...
tocar em algo vivo tornou-se um alvo a atingir;
nada, tudo morto, tudo frio e singelo, desmembrado
pelo tempo e pela loucura dos homens.
apoiando-se nas paredes, tenta não cair nos degraus
por onde passa a cambalear, por entre corpos adormecidos
da ressaca de qualquer coisa... inútil;
sente a necessidade de se desviar de algo,
mas prende-se-lhe o pé e cai.
desorientado, já não sabe onde está, como, porquê?
num acto de corrosão, ele mantém-se caído,
deixando o corpo ser calcado por movimentos cruzados
de pés que acordaram para mais um novo dia de sol e chuva.
agora, jaz morto no chão, à vista de tudo e todos
os que não acudiram na sua queda fatal. é tarde demais.
sucumbiu ao paraíso, ao silêncio, a um desenho
que permanece num qualquer quadro, num qualquer museu
do mundo inteiro.
boa viagem.


Sónia M.
Debaixo do Bulcão poezine
número 8 - Almada, Março 1998















Imagem: "Parábola dos Cegos",
Pieter Brueghel "o velho"
Mais sobre o autor em:
http://www.artchive.com/artchive/B/bruegel.html