segunda-feira, dezembro 27, 2010

Trezentos invernos



Bebe Morada
o sangue Meu
escuta e quebra
as prisões da Humanidade.

Despe o Manto
ao Céu, e foge
por entre a Folha
que pertence ao nada.

Bebe Morada
Caverna do Infinito
de trezentos invernos
que trazes em nós
Bebe Morada
o Sangue Meu.


Lino da Cunha

Debaixo do Bulcão poezine

Número 1 - Almada, Dezembro 1996

sábado, dezembro 25, 2010

Morgue

Debaixo do Bulcão poezine
Número 1 - Almada, Dezembro 1996

quinta-feira, dezembro 23, 2010

Luísa Trindade

Debaixo do Bulcão poezine
Número 1 - Almada, Dezembro 1996

quarta-feira, dezembro 22, 2010



Mergulho no mar da alma
e afogo-me em espasmos
de loucura sã.
Atravesso as fronteiras da carne
e perco-me nos meandros do ser
vislumbro a dor dos homens e
contemplo seu pranto surdo.
Eu sou a lágrima que dos olhos cai
como cristal puro.
Eu sou a voz que dos lábios sai ecoante
por entre os ventos, a palavra dos pássaros,
o caminho dos homenos, o sonho dos deuses,
sou a cor que transmuta a pedra.
Eu sou...

António Boieiro

Debaixo do Bulcão poezine
Número 1 - Almada, Dezembro 1996

Silêncio!
Que hoje se conta um fado.
A história de um amor,
da eterna saudade,
de noites de luzes perdidas
num sonho sonhado sem tempo
ao sabor da morte, ao sabor
do fado.
A história de corpos vagueando
no fio de uma navalha
a história de uma falha.
De olhos sem brilho,
de almas despertas,
de flores encantadas,
de um conto de fadas.
A história de um mar que aclama.
Silêncio!
Que hoje se canta a alma.


António Boieiro

Debaixo do Bulcão poezine
Número 1 - Almada, Dezembro de 1996

terça-feira, dezembro 21, 2010

Morgue

Debaixo do Bulcão poezine
Número 1 - Dezembro 1996

3 and a half pages

3 men
In the desert
3 blows of
Hot air
3 twisters on the
Horizon
3 books on the
Bonfire
3 suns on the
Sunset
3 colours off
The rainbow
3 tears in the
Ocean
3 years
On the run
3 figures
On the wall
3 wiseman
Going insane
3 flowers
With a thirst
3 glasses with
No liquor
3 bottles
All alone
3 laughs
In the rain
3 wounds and
No pain
3 bitches with
No wish
3 fears and
A tear
3 pieces of
A game
3 stars in
Loneliness
3 thoughts of
Desolution
3 mirrors in
Reflexion
3 creatures of
One love
3 traps for
The mice
3 points for
Shakille
3 cracks and
A shout
3 smokes on
The weed
3 shakes on
Dirty hands
3 fantasies on
My mind
3 brokenheart
Women
3 riots on
The ship
3 veils
Unbroken
3 fucks
In a row
3 walks in
The park
3 children in
The dark
3 pages and
A half
With no sense
Nor any kind of
Sense.


Miguel Nuno

Debaixo do Bulcão poezine
Número 1 - Almada, Dezembro 1996

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Abismo


Abismo
Solidão
Estou só
Bismo, tismo, pó
Abismo
Pó solidão só
Tismo abismo pó
Pó solidão estou só
Abismo tismo
Só pó dó


Paula Cristina

Debaixo do Bulcão poezine
Número 1 - Almada, Dezembro de 1996

sábado, dezembro 18, 2010

Dados técnicos e mortais sobre a G-3 e os vários prazeres de um militar "normal" com uma G-3


A G-3 é uma arma automática de cano fixo que funciona por
acção indirecta de gases o que diz muito sobre a nossa
ligação indirecta com a G-3.

A G-3 contém 19 munições que equivalem a:

19 animais tanto por fome como por prazer este último inclui
bestialidade com animais mortos

19 famílias que inclui tias chatas antipáticas e da linha,
avôs fascistas que estão sempre arrochados no teu lugar
preferido na sala e claro por último mas não menos importante
grandes heranças, tias sovinas, irmãos e primos agarrados ao
pó, enfim continuando lá ia o stock do exército

19 superiores (sem comentários)

19 skins (idem idem aspas aspas)

19 junkies são munições desperdiçadas mas mesmo assim
só pelo prazer

Alcance máximo 3.800 m. acompanhado por duas frases célebres
"confia na virgem e não corrras"
"podes correr mas não te podes esconder"

Peso da arma 3.950 g.
que é tanga militar, ao fim de uma hora passa para o
dobro ou triplo do peso

Velocidade inicial do projéctil: 700 a 800 m. p/segundo
Velocidade final do projéctil: morta

Peso do carregador vazio: 0,280 g.
peso que não convém em tempos de guerra (infelizmente não
temos ninguém vivo para confirmar esta tese em termos práticos)

DADOS GENTILMENTE CEDIDOS POR FONTE ANÓNIMA RESIDENTE EM
PAÍS ESTRANGEIRO QUE DEPOIS DE TER PASSADO DA TEORIA À
PRÁTICA DECIDIU MUDAR DE PROFISSÃO IDENTIDADE E SEXO.


Z. BTTA

Debaixo do Bulcão poezine
Número 1 - Almada, Dezembro 1996

domingo, dezembro 12, 2010

Fantoches do desejo



Pinto o desejo de momentos, que fazem de ti um rio de cores
Que nunca soube atravessar o deserto frio de teu olhar
Cruzo as ruas da loucura, corôo o mundo de espinhos
Dizes que ainda somos um, mas eu sinto-me tão sozinho

Vendo sonhos para nunca me chamarem de frustrado
Intrigas-me e eu perdoo-te ainda somos dois no mesmo jogo
Pagas para veres sentir estar tão perto do fim
Faço de conta que te esqueço, posso eu fugir de mim?

E eu vim só para te ver
Agora que o comboio já passou
Aplaudam a decadência, o espectáculo já acabou
Mas eu faço de conta que ainda agora começou

E quanto mais eu fugir
Mais correm atrás de mim
Para que eu nunca me esqueça
Que estou tão perto do fim

Deitar tudo a perder
Por uma noite ou um beijo
Pinto de negro a loucura
Fantoches do desejo

Fecho os olhos... talvez te encontre na escuridão
Abro as portas que um dia se transformaram em prisão
Navego no meio do lodo, tenho todo o tempo do mundo
Para fugir ao desespero, ou será apenas ilusão

Revela-me os segredos que turvam a tua alma,
Deixa-me saltar os muros que impões à tua volta
Não te escondas na promessa, que nunca poderás cumprir
Faltam-te agora as palavras, no fim só te resta fugir

Deitar tudo a perder
Por uma noite ou um beijo
Pinto de negro a loucura
Fantoches do desejo...



Aarons Bia

Debaixo do Bulcão poezine
Número 1 - Almada, Dezembro 1996

sábado, dezembro 11, 2010

Vazio de ideias feito

Sala estava já cheia,
Completa pelo ambiente vazio.
Aquele que a enche está presente
Prumo potente que segura
A palha de cobertura

A sala composta mais
Que um simples par de empregados
Há força trabalhadora
Que trepa o tracejado
Da tarefa

A sala está linda
Trespassada pelo azul
Ora longe ora perto
Ideia longa que só se lembra
Límpida e legitimante lutadora

A sala, essa ainda lá está
A sala, essa já lá esteve
E conteve o vaivem de vozes
E vergonhas vazias de vida


Aurélio Engeerling Auffass

Debaixo do Bulcão poezine
Número 1 - Almada, Dezembro 1996

sexta-feira, dezembro 10, 2010

Caligrafia


Escrever é muito bom
E é também sinal de que já
Somos homenzinhos.
Mas é preciso que nos entendam
Para isso exercitamos a caligrafia.
Depois, podemos exercitar as ideias,
Mas, primeiro a caligrafia -
Dizia a régua de pau feita
(Não sei já em que ano foi)
Na mãozinha calejada do meu avô.


Sturrefsit Adjukaatrix

Debaixo do Bulcão poezine
Número 1 - Almada, Dezembro de 1996

sexta-feira, outubro 22, 2010

Fragmentos da infância


Viço da infância
Destituía a maioridade
Na leveza das consciências
Cegava a realidade

Ansiosos do futuro
Mergulhavam os puros
Sonhando com albores da vida
Transformavam suas idas

Desprovidos da sensualidade
Conhecimento era curiosidade
Música, intenso prazer
Como era sedutor aprender!


Eloisa Menezes Pereira
Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010
(ilustração de André Antunes)

segunda-feira, outubro 18, 2010

intervalos de escuridão e luz


o q é a angústia?

o q é uma fachada?

é uma porta aberta

e uma fechada

intervalos de escuridão

e luz

barreiras

atalhos

passagens secretas

das correctas para as incorrectas

seguindo as setas

tantas vezes de mão dadas

ou solitários como poetas

fazendo as perguntas certas

e escolhendo as respostas erradas

o q é a angústia?



Carolina Rodrigues
Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

quinta-feira, outubro 14, 2010

Corpos


Encontro no teu ventre
O sonho de me perder
E nos teus lábios
Acordo todas as madrugadas

Descendo pela tua pela
E pelo teu corpo
Entendo como se levanta
O vulcão do teu prazer

Rasgo a fúria
De me fechares nas tuas pernas
Enquanto brota de dentro de ti
O rio que leva o néctar
À floresta das túlipas

Somos amantes das cavernas
E das trompas que tocam
Num rufar de pernas e abraços
Deitados no chão das montanhas

Quero possuir-te na concha dos deuses
Em espaços para não adiar o amor
Inventando lugar de encanto
Em camas de todos os prazeres


Victor Serra
2/2/2010


Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

segunda-feira, outubro 11, 2010

Anjos, Lx



caras
línguas que não conheço
só reconheço os olhares
que são universais
alguns cheiros mas nem todos
alguns são demasiado internacionais

um homem cambaleia
tropeçando na sua vida e na sua morte
à sua sorte

duas cores
trocam palavras
trocam favores
experimentam-se sabores

aqui
eu não sou ninguém
sou uma raça
sou uma branca
alguém
todos andam agrupados
pouco misturados

quando se juntam
é para trocar
comprar
vender
estas três coisas
estão sempre a acontecer
do amanhecer
ao anoitecer
numa loja
numa esquina
uma troca tem de ocorrer
numa zona de vício
de miséria
o dia não acaba
o corpo não acalma
há uma sede de abandono
ao que nos deixa
completos e dormentes
mesmo que cada vez mais
incompletos e infelizes

o meu cérebro paira
entre a palavra e a cor

como um trovador
canto
e conto
estas histórias que vejo
nesta vida que tenho percorrido

guardo frases
que não serão repetidas



Carolina Rodrigues

Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

sábado, outubro 09, 2010

Uma homenagem a John Lennon (9 outubro 1940 - 8 dezembro 1980)

"A Day in The Life", um dos grandes poemas que Lennon compôs para os Beatles.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Superação



Cerrou-se o portal
Com uma pálida luz
Pensamento mortal
Minha sina, minha cruz.

Na cegueira repentina
Da pupila solitária
Sem lume na retina
Negligente luminária.

Embaraçou o nervo secreto
Sem ilusão de ótica
Da luz, um furto discreto
Na ação caótica.

No reflexo cambiante
Eis uma cena difusa
No meu passo hesitante
Muito mais confusa.

Como cruel navalha
Dilacerou minha segurança
Ergueu-se uma muralha
Dissipou minha esperança.

Sem estímulo luminoso
Orei por um indulto
E o pedido silencioso
Não quero apenas um vulto.

Cintilantes lantejoulas
Já avisto sem luneta
Sem o ópio das papoulas
Exalto a cura em opreta.


Mônica Quinderé



Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

(Paginação de André Antunes)

segunda-feira, outubro 04, 2010

O medo


Noite de jangadas e de medos
Tempo que resta para encontros
Enquanto o silêncio se apodera
Do que inventamos nos jornais

Como se o tempo da outra senhora
Voltasse tranquilamente alienando
As memórias de já não sentirmos nada
Do que nos cala... e vamos consentindo

Mas nada nos calará a revolta
Que trazemos nas palavras
Nem somos acomodados do deixa andar
E sabemos... quem nos empurra para o abismo

Victor Serra
24-11-2009


Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

(Ilustração de André Antunes)

domingo, outubro 03, 2010

Construção


Esculpi
na pedra bruta,
o meu sentir e a minha alma.
Por entre as colunas do templo,
voam os meus afectos e sentimentos.

Lentamente, mas segura da razão
a obra nasce em consciência...

Caminho de olhos bem abertos,
a obra nasce em consciência...

Caminho de olhos bem abertos,
apoiado um bordão de acácia
em direcção ao Supremo.
De cabeça erguida,
enfrento ventos e silêncios.

Tudo é perfeito...
o aroma das rosas aguça-me.
No céu, entre astros
realça a estrela d'Alva.

A essência e o profano
transporta o astro-rei.
A obra floresce, a pedra está polida.


Artur Vaz


Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

quarta-feira, setembro 29, 2010

Quase num outro país qualquer



Há muito tempo que ele tanto estranha a bondade como a maldade humana.
Foi por isso que escolheu viver num dos bairros mais feios e pobres da cidade.
Ali sabe que não é invejado nem bajulado por ninguém, nem tão pouco olhado de lado. É um indiferente, um quase invisível, como todos os outros habitantes, pretos, brancos, castanhos ou cor de rosa.

Passa a vida a pintar, porque é o que melhor faz e também o que mais o satiasfaz.
Tem compradores certas das suas aguarelas sobre Lisboa, de Alfama à Lapa. Os óleos - sem procura - enchem as paredes e apenas são conhecidos pelos raros amigos. Também pinta interiores de casas, quando os bolsos estão mais vazios e o empresário João Pintor precisa de reforços.

Achou estranho os aviões voarem tão baixo a meio da manhã, foi por isso que veio à janela. Não se assustou, como a senhora que descobriu imóvel no meio do passeio. Além de suar, tinha um ar assustado, como se pensasse que estava a rebentar uma guerra qualquer por aí.
Não achou piada ao medo da mulher idosa, muito menos ao barulho dos jactos, que conseguiram estremecer o cavalete e borrar ligeiramente a aguarela que estava a pintar.

Só à hora do almoço, quando passou pelo café, percebeu a "guerra" que se travava na Capital. Ao olhar de soslaio para a televisão, descobriu que o papa andava por aí, a fazer milagres.

O café estava mais cheio que o costume, para um dia da semana. Foi então que ouviu dizer que era feriado em Lisboa, graças ao tal rei dos católicos, que aparecia no filme com o presidente, mais angelical do que nunca.

Numa outra mesa, mais dada aos futebóis, os vizinhos preferiam o futebol à missa. Colocavam um tal Queirós no assador, enquanto faziam futurologia escura sobre o campeonato do mundo na terra do "Chaka Zulu". Não ganhavam um jogo. Queriam um tal Quim, um João Moutinho, um Martins, um Ruben qualquer coisa, um Makukula e ainda um Scolari na selecção. Rendeu-se ainda mais à sua ignorância, não sabia que havia portugueses com estes dois últimos nomes...

Antes de pagar o café, sorriu de felicidade por raramente ver televisão, ler jornais ou ouvir telefonia. A sua companhia continuava a ser o velho gira-discos e a música psicadélica dos anos sessenta e setenta.

Virou as costas ao filme de 12 de Maio e lá foi, para a sua casita, quase num outro país qualquer...


Luís Milheiro

Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

(Ilustração: desenho de André Antunes)

terça-feira, setembro 28, 2010


Citadino selvagem decidiu queimar
Todas as suas cartas
Enredadas em eufemismos de si:
Castas articulações de pós piedade que,
Após terem esganado muitos doutos flamingos,
Dá-vos destas
Ofegantes tremuras dentro da distância
Entre bruxas e arcanjos
- oh criaturas de labor descalço
viajando na fantasia mas sempre
com o coveiro às cavalitas -
sejam sabedoria de despropósito literário
nesta batedeira part-time sobre dádivas
- concessionário de comissuras
jamais premeditadas -
verga gaga e gabarolas;
chagas derrapadas à deriva
na parceria da polpa dum
alento morno e aconchegante;
com os lençóis todos descompostos como combinado
pela morbidez de tantos bocados de beijos
imbecilmente inertes
- retalhos de recordações -
no abismo da juventude
outrora viciosa,
outrora moribunda,
outrora dum limão sentimental e repugnante;
como singelo tumor cor de autópsia
- peripécias do desenrasca
a anis, cobalto e crude
quando dois corpos feitos mundo
decidem diluir-se nesta história.


Salmonela Pintassilgo


Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

(Ilustração de André Antunes)

domingo, setembro 26, 2010

Obsessão


dias perdidos em volta do que não volta
dias perdidos em volta do que se perdeu
porque se devia perder
porque doía e não devia
doía como uma fractura
sem tratamento
sem cuidado
e mesmo assim
esperava-se
e mesmo assim
chorava-se
quando se vai perdendo o rumo
o norte
a vontade
até a maior mentira
parece verdade


Carolina Rodrigues


Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

(grafismo de André Antunes)

Até já


De volta à esfera redonda, sento-me no chão
Nunca me dei bem com cadeiras.
São construções de vaidade e ostentação, perturbadores da realidade
Aqui no chão, posso estender-me sem a preocupação de cair
Aqui no chão, olho o céu e água
Aqui no chão, contrario a hereditária ceifeira
Aqui no chão, mastigo cereais sem leite
Aqui no chão, as expectativas são baixas mas a esperança é realmente verde
Aqui no chão, as pedras falam e as formigas folgam
Aqui no chão, a única agressão é provocada pela espera de um eclipse
Aqui no chão, as ideias não têm seguimento e os pensamentos confundem-se com nuvens
Daqui do chão, consigo ver-te e tocar o teu reflexo
Daqui do chão, a tua bandolete é amarela
Daqui do chão, ouço o teu sorriso
Daqui do chão, digo-te até já
É aqui no chão que vou esperar.
Daqui do chão, vou morrendo vivendo

Obrigado, são só devaneios
Não sei escrever, mas já sinto como gente grande


Tiago Espírito Santo


Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

O Infinito


Dentro do encanto das palavras
E do vento que rasga o nevoeiro
Encontro as velas dum veleiro
Desfraldadas numa bandeira
Com sonhos e utopias de poetas
E loucos de jaulas desenhadas
Para lá do horizonte entre as nuvens
Escondemos percursos de marés
E descobrimos o infinito do destino

Para onde nos levam as mãos da vida
Os cacos das conchas dos nossos búzios
Os corpos desnudados dos desejos
E a chama que apagamos todos os dias

Somos restos raros de percursos e silêncios
Fomos mortos que não se deixam liquidar
25 maneiras de sermos marionetes
Com tudo o que se cala na magia do fantástico
Só nos resta os náufragos da nossa história
E o vento que não leva o pensamento
E nos deita na memória

E nos corpos nus de todos os encontros


Victor Serra
27/1/2009


Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

(grafismo de André Antunes)

domingo, agosto 15, 2010

FOGO POSTO


I

Estou no centro do país, rodeado de incêndios.
Os pinheirais em fogo esbraseiam o ar.
Reguei o telhado e o quintal porque as velhas são muitas.
A vizinha cega, sem qualquer progresso, vai tocando o seu órgão Tornado 4.
A irmã apanha velhas, mostra-mas na mão,
apagadas ou parecendo ou quase,
e fala do carteiro - motorizada aqui,
saco acolá, sapato mais além -
que, presuntivo pirómano, a si mesmo se teria apagado nas águas do Tejo.


II

O aeroplano da lista vermelha é que semeia o fogo.

Von Richthofen - passe-montanha, óculos «à aviador», dentes cerrados -
é que vem semear o fogo no reino do verde pino.

Abatido em 18, ressurgiu
com o estampido do guarda-chuva que se abre
e - pano, arame, madeira - ganha altura
para, numa vrille desaparafusada,
vir castigar-nos com sua espada de fogo.

Disse Deus: - Ó aviador, vai-me a essa gente remota
e avia-lhes uns fogos que se vejam!

Polegar para baixo, Von Richthofen
incendiou milhares de hectares em Portugal.
Sua lista vermelha (laranja? limão?)
é vista com frequência na zona centro do país.

Disse Deus: - Basta. Já sinto calor na cara.

Este, que foi um herói ao serviço do Kaiser
- Cruz da Águia Vermelha
Cruz da Águia Negra
Cruz de Ferro -
descer, quando Deus quer, a incendiário de pinhais?

Credo, custa-me a crê-lo!



Alexandre O'Neill

As Horas Já de Números Vestidas (1981)
em Poesias Completas
ed. Assírio e Alvim, Lisboa, Novembro 2000

domingo, agosto 08, 2010

António Vitorino / PLU!



Confissão de um intelectual de esquerda
Texto de António Vitorino, desenho de PLU!
Em GAMBUZINE 2

sexta-feira, agosto 06, 2010

Catarina Henriques / Fruzzi


Poema de Catarina Henriques
(publicado anteriormente no poezine 24),
desenho de Fruzzi.

Em GAMBUZINE 2

terça-feira, agosto 03, 2010

Edição 38 adiada para Setembro!


A edição 38 do Debaixo do Bulcão poezine estava agendada para Julho. Contudo, dificuldades várias obrigaam-nos a adiá-la para Setembro próximo. Aos nossos colaboradores e leitores pedimos desculpa pelo atraso. Em compensação, divulgamos já a capa desse próximo número: desenho de André Antunes, responsável pela coordenação gráfica da edição.

quarta-feira, julho 21, 2010

ALEXANDRE HERCULANO – 200 ANOS APÓS O SEU NASCIMENTO



Passados dois séculos após o nascimento de Alexandre Herculano, é de facto uma grande lacuna não ter sido organizada nenhuma iniciativa à efeméride no âmbito nacional e oficial.

Surpreendente? Nem por isso. Em ano de centenário da implantação da república, dificilmente não sobraria ao Estado dinheiro e ideias para homenagear um homem que foi “apenas” um dos nossos mais elevados vultos e um combatente – em palavras e em armas – pela liberdade, pelo progresso, e pela corporização do civismo e da ética numa época.

Além de ser um grande historiador, Herculano fez poesia, teatro, romance, e ensaios. Atento ao seu tempo, foi também um acérrimo combatente pela liberdade. Denunciou as misérias e a corrupção. Foi um liberal sempre coerente e corajoso, com uma dimensão ética rara no seu tempo (século XIX).

Enquanto intelectual foi o portador dessa mudança, envolvendo-se na educação das novas gerações em instituições filantrópicas e em sociedades filomáticas, visando uma valiosa transmissão de saberes, sedimentando a mentalidade dos jovens para o novo ideal liberal, constitucional e democrático, em profunda contradição com a sociedade burguesa, que sufragava os mais desprotegidos.

E é aqui precisamente que pode estar a causa do desinteresse por este centenário por parte de quem tem a responsabilidade de gerir a nossa Cultura, pois a sua amnésia, coloca na penumbra do esquecimento figuras tão importantes da nossa memória colectiva e ícones de nossa identidade.

Toda a sua vida foi marcada por lutas políticas e pela reconstrução literária da história de Portugal. Alexandre Herculano foi dos mais importantes e notáveis escribas do nosso panorama literário. A sua escrita é envolvente de um cunho romântico e que se esteira desde a poesia, ao drama, à novela e ao romance.

É justo que se reconheça que foi um dos grandes escritores da sua geração, desenvolvendo o romantismo por excelência e a incompatibilidade do indivíduo com o meio social que o rodeia – ou seja alguém que se singularizou como um português de horizontes largos, um historiador probo e moderno, fiel às provas e à ciência, fundador da historiografia contemporânea, um cidadão comprometido à causa liberal e exemplar.

Escritor de perfil clássico, foi dos mais dotados no manejo da língua e uma enorme figura moral – homem de um só parecer; de um só rosto; de uma só fé; de antes quebrar que torcer.
Em suma, Alexandre Herculano é um símbolo forte do seu tempo. Uma vida dedicada à causa pública numa sociedade em permanente mudança, com todas as consequências sociais e pessoais que daí pudessem advir.

Digamos que o escritor sempre se manteve fiel ao seu espírito; o da procura de uma síntese fecunda entre a tradição e a modernidade, com um empenhamento intenso pela reforma do país, de modo a combater o atraso e todas as formas de intolerância.

É importante que à falta de valores que afecta a nossa sociedade, se ponha fim a um notório silêncio propositado – a todos os níveis – e que sejam divulgados às gerações vindouras a sua rara e ímpar consistência moral.

Alexandre Herculano e outros escritores têm sido tratados de um modo injusto o que certamente não aconteceria num país civilizado, onde os homens do passado são referência primordial para a construção de um futuro.

A ausência de importantes autores do nosso património literário no Plano Nacional de Leitura faz com que decorra o fracasso do nosso próprio sistema de ensino, incentivando, acima de tudo, os alunos para um determinado tipo de leitura que vise essencialmente o conhecimento da nossa própria identidade.

De facto, Alexandre Herculano foi um grande construtor de cultura pública por ter sido mais que um escritor e uma personalidade com grande intervenção no espaço público tendo como pressuposto «o objectivo de construir uma nova cultura para o país». Vertical nas suas atitudes, Herculano rejeitou honrarias: a pasta de Ministro; a Comenda de Torre e Espada e outros títulos. Atento à política da época, o historiador entende que «a Liberdade deve ser defendida por instituições históricas credíveis».

Toda a sua obra é constituída de um pertinente realismo, face ao momento de crise em que se vive no seu tempo, mas tão actual no momento presente.

Hoje, passados tantos anos, não se pode deixar Herculano e outros grandes vultos da nossa história guardados no biombo do tempo, onde a sedimentação do pó sarcástico da memória envolvem as suas vidas e a preciosidade das suas obras literárias.

Consciente da ingratidão e do realismo da alma lusitana, Alexandre Herculano que faleceu a 13 de Setembro de 1877, merece mais do que simples manifestações despercebidas, as quais em nada servem para enaltecer o valor intrínseco da sua intervenção cultural, cívica e social.



Artur Vaz

Artigo publicado no semanário Sem Mais Jornal
de 10 de Julho de 2010

sábado, julho 17, 2010

Novo Limiar


Bocejo as multidões
Aparentemente movo-me no ar.
Esta praia, a praia deserta,
está repleta de coisas.
Conscientemente altero o meu estado de espírito
para poder voar.
Eis uma nova fronteira.
Aqui a paisagem desfaz-se
como um ser vivo imóvel.
Já não há coisas, nem o mar, nem as estrelas,
- apenas a praia onde tudo está personalizadamente desarrumado
Aí ninguém me vê nem eu vejo ninguém.
Porque todas as conchas são cegas.



Vang

Debaixo do Bulcão poezine
Númeo 4 - Almada, Julho de 1997

quinta-feira, julho 15, 2010

C'est fini la poésie...


As paredes do qurato púrpura transformaram-se em telas vivas, vestidas de pinturas impressionistas. Acordei ao som de uma melodia floral, encaixada num canto de um salão de chá vitoriano, com segredos escondidos debaixo das saias das donzelas. O piano soltava notas com cheiro a alfazema, que esvoaçavam no ar como se fossem as última folhas secas do princípio da primavera... Os violinos ensinavam o caminho para o paraíso suicida. Era um cenário perfeito. A última fantasia de uma virgem aprendiz de feiticeira.
Aumentei o volume, e a orquestra estava ao meu comando. A música colou-se ao momento, fiz amor com o piano e casei-me com o maestro.
Puro incesto musical. Não faz mal, a banda sonora não tem memória visual.


Catarina Henriques

http://algodaonegro.blogspot.com/

Debaixo do Bulcão poezine
Número 30 - Almada, Verão de 2007

domingo, julho 11, 2010

Crónica de uma manhã de Agosto


Eu estava de férias e sem vontade de ter pressa para coisa nenhuma. Saí de casa, a meio da manhã, para ir tratar de um assunto ao 1º Cartório Notarial de Almada. Mas, como ia precisar de dinheiro, e tinha pouco, achei melhor passar primeiro por uma caixa multibanco. Por sorte, existe uma caixa multibanco mesmo ao lado do 1º Cartório Notarial de Almada.

Fui.

Não havia dinheiro na caixa multibanco. Resmunguei: que raio de maneira de começar o dia. Uma senhora de idade avançada, muito simpática e algo andrajosa, pareceu adivinhar os meus pensamentos. Então, chegou-se a mim, e explicou-me que aquela caixa multibanco já não tinha dinheiro. Antes que eu me desse por satisfeito com a explicação, ainda acrescentou:
- Já não há dinheiro na outra ao lado, também.
Eu ia agradecer-lhe a solicitude, mas ela prosseguiu com a explicação:
- Já não há dinheiro. Já não há dinheiro porque, desde manhã cedo, vieram aqui muitas pessoas levantar dinheiro. Veja lá o senhor que até faziam bicha. Faziam, faziam!... Nunca vi uma bicha tão grande para levantar dinheiro. Veja lá o senhor que a bicha ia até ali à esquina. Credo, até parecia que estava toda a gente à espera que o mundo acabasse hoje. Ai, parecia, parecia!... Senão, porque é que toda a gente havia de lhe dar para levantar dinheiro logo hoje, não me dirá o senhor?
Eu não sabia. Por isso não lhe disse. E ela:
- Era uma bicha para levantar dinheiro, que até parecia que estava o mundo para se acabar!
- Pois. Mas o que se acabou foi o dinheiro - respondi-lhe.
- E, já agora, o senhor não me pode dar algum dinheirinho para eu comer uma sopinha?
Juro que, se fosse não uma senhora mas um arrumador de carros fora da sua zona de serviço, eu não lhe dava nem um cêntimo. Mas, como era uma senhora idosa, simpática e meio andrajosa... Procurei na carteira e vi que, afinal, ainda tinha dinheiro suficiente. Dei à senhora uma moeda de cem escudos, para a ajudar a comer uma sopinha. Depois, pensando melhor, acrescentei à dádiva uma moedinha de 50 escudos, para agradecer a gentileza da senhora.
Agora ando a pagar gentilezas - pensei. Que bela maneira de começar o dia!

Mas eu tinha coisas importantes para fazer. Dirigi-me, então, ao 1º Cartório Notarial de Almada. Entrei. A sala estaria às moscas, se as houvesse: não havia. O que havia, sim, era duas senhoras a cavaquear com um senhor, encostados ao balcão - do lado de fora do balcão.
- Estou grávida. Será que posso olhar para o sol? - perguntava a mais baixota.
E riam muito. A mais espigadota tinha uma chapa de radiografia na mão e explicava profusamente à baixinha e ao senhor como é que o sobrinho mais novo tinha partido um dedo quando tentava quebrar nozes na porta da cozinha.
Deduzi que aqueles eram os funcionários do 1º Cartório Notarial de Almada.
O senhor, meio fuinha mas muito correctamente engravatado, cortou a conversa:
- Bem, vamos ter de arranjar maneira de dividir isso pelos três...
Repartir uma chapa de radiografia pelos três? Que ideia bizarra, pensei.
Para me fazer notado, emiti aquele ruído com a garganta, que as pessoas fazem às vezes quando querem ser notadas. Depois, falei:
- Bom dia. Eu venho fazer o reconhecimento de uma assinatura.

Só então eles pararam de falar, e olharam para mim com um ar muito surpreendido. Resisti à tentação de tocar em mim próprio, para me certificar de que não era um fantasma. A mais entusiasta (a que dava os pormenores sobre a maneira como o sobrinho fracturara a falangeta do dedo indicador esquerdo) olhou-me com uma tromba que, na altura, me pareceu maior e mais alaranjada que a tromba do elefante do jumbo de Setúbal. A outra, desconsolada, fitou-me como se reconhecer uma assinatura fosse a tarefa mais penosa de que se conseguisse lembrar naquele instante - ou como se tivesse acabado de receber a notícia de que o seu cãozinho de estimação tinha sido atropelado na Avenida Dom Nuno Álvares Pereira. Quanto ao homenzinho, que além de pequenino era meio achinesado, virou-se para mim com tal aspecto de ferocidade que, por momentos, julguei que ia desembainhar uma katana e e saltar-me para cima gritando banzai! Mas eu tenho uma imaginação algo delirante, é esse o meu mal. Além do mais, lembrei-me, os chineses não usam katana nem dizem banzai.
- Olhe lá, não podia ter vindo noutra altura, não? - perguntou-me a tromba de elefante do jumbo de Setúbal.
E eu disse-lhe a verdade:
-Não!
Surpreendentemente (ou talvez não) a minha réplica convenceu-os. Os três, à uma, começaram logo a tratar do meu assunto. E eu juro que nunca tinha visto burocratas trabalhar de maneira trão afincada e expedita. Quando me viram aviado e a dirigir-me para a saída, nem esperaram que eu pusesse o pé na rua. Saíram de trás do balcão, vieram colados às minhas costas até à porta do 1º Cartório Notarial de Almada - e ali ficaram, a decidir qual deles iria utilizar primeiro a chapa de radiografia onde se viam os ossos maltratados do sobrinho daquela mais entusiasta e trombuda.

Ai, pus-me a matutar: será que o mundo endoideceu de repente?

Como ainda queria comprar o jornal (que eu, em férias, ando sempre mal informado, e pretendia abrir hoje uma excepção) comecei a caminhar em direcção a um quiosque que eu cá sei. Andar clarificou-me as ideias. Afinal, se o mundo tem andado a enlouquecer aos poucos, não pode ter ficado maluquinho de repente. Esse pensamento reconfortante fez-me sentir... como direi?... reconfortado. Reflectindo um pouco mais no assunto, concluí que é a própria profissão de burocrata que faz com que os burocratas acabem por ficar com os neurónios meio atrofiados. É normal.
Parecia-me uma explicação razoável e fiquei contente, comigo e com o mundo.

Mas logo me sobressaltei novamente. É que, na rua, toda a gente estava a pôr na cara uns óculos de sol horrorosos. Que coisa estranha! Aquilo fazia lembrar os óculos usados pelos personagens de um filme de John Carpenter. Esses óculos (os do filme) permitiam, a quem os usava, distinguir, claramente e em qualquer local, os extraterrestres dos legítimos nativos deste planeta Terra. Fiquei preocupado, mas...

Pronto, lá estava eu outra vez com a minha imaginação delirante.
Ando a ver demasiados filmes de ficção científica, pensei. E, caminhando, cheguei ao quiosque.
Estava fechado.
Logo aquele quiosque, que nunca fecha, estava fechado nessa malfadada manhã! Reparei então no papel branco, colado com fita adesiva na montra do quiosque, onde estava escrito a marcador o seguinte:

ENCERRADO POR MOTIVO DE ECLIPSE

Eclipse? Qual eclipse?...

Eclipse do quê?

Pois era, o eclipse... E eu, estupidamente, não me lembrava.
Censurei-me: é o que faz não ler jornais. Nem ver televisão.
E agora?

Fiquei com uma vontade danada de comer um gelado. Fui ter com um senhor que estava a vender gelados na rua, e pedi-lhe um gelado. Ele estava de nariz no ar, com aqueles óculos de sol horrorosos que me pareceram qualquer coisa tão ignóbil que agora me abstenho de referir. E, de nariz empinado, sem se dignar baixar a cabeça para olhar para mim, perguntou-me:
- Temn mesmo de der agora?
E eu disse-lhe a verdade:
- Tem.
E ele, de nariz no ar:
_ Bom...
Baixou a cabeça. Tirou os óculos. Abriu a arca de gelados. Deu-me o gelado que lhe pedi. Entreguei-lhe o dinheiro e fiquei à espera do troco. Enquanto ele contava as moedas, senti um impulso iresistível e perguntei-lhe:
- Posso experimentar?
- O quê, os óculos? Ó amigo, experimente lá, mas só durante um bocadinho, está bem? É que eu não quero perder a melhor parte do eclipse.
Então, com um assomo de emoção indescritível, agarrei naqueles óculos inefáveis, enfiei-os na minha cara, empinei o nariz para o sol.

À volta, tinha-se juntado uma mmultidão: com aqueles óculos de sol horrorosos, olhavam, de nariz empinado, para o sol daquela manhã de Agosto.

E foi assim que, finalmente, me tornei uma pessoa normal.

Daí a importância desta crónica.


11 de Agosto de 1999

Nota: Este é um texto de ficção. Qualquer semelhança com factos ou pessoas reais é pura coincidência. Exceptuando, obviamente, o eclipse - que aconteceu mesmo, nessa manhã de Agosto.


António Vitorino

(texto inédito)

domingo, junho 27, 2010

Futebol


Ernesto possante, dito A Locomotiva,
Era o pulmão da sua equipa.
João Pato, jogador franzino e rápido,
Era O Grande Artista da equipa adversária.
O Locomotiva era limpo e leal
Mesmo quando entrava, como se diz, a matar.
João Pato era também o matador da equipa
Mesmo quando falhava de baliza escancarada.
Naquela tarde, a meio campo,
Perante escassas centenas de espectadores,
Corria o veloz Pato com a bola dominada
No seu drible estonteante,
Vai daí, Ernesto, o Possante, entrou com tudo,
Como se costuma dizer.
Em câmara lenta, observamos o patudo pé
do limpo e leal Possante em riste
Na fraca perninha do teórico Pato.
A televisão não nos dá o som quebradiço
Da tíbia e do perónio,
Mas vá lá que ainda conseguimos ver
A fractura exposta e o sangue.
A televisão mostra-nos que o futebol
Não passa de um jogo de bárbaros.
Os gajos da maca, que até nem gostavam de futebol
E estavam a contar estúpidas anedotas de louras,
Só se aperceberam do acidente
Quando ouviram o Pato berrar:
Ai ai ai que esta besta partiu-me a perna.
E lá levaram o Pato para fora do estádio.
Dizem os regulamentos
Que nenhum jogador pode ficar a sangrar dentro do campo.


Miki Sorraia

Debaixo do Bulcão poezine
Número 26 - Almada, Junho de 2004

sábado, junho 26, 2010

uivando nas chagas rubras da manhã


hoje, não há espaço para
lágrimas a lamber nas feridas
apenas o sangue inundando o peito e
suspiros agudos, dolorosos
escorrendo na parede das ideias


Miguel Nuno

Debaixo do Bulcão poezine
Número 18 - Almada, junho 2002

sexta-feira, junho 18, 2010

Fala do Velho do Restelo ao Astronauta


Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.


José Saramago


Os Poemas Possíveis (1966)

José de Sousa Saramago (Azinhaga, Golegã, 16 de Novembro de 1922 — Lanzarote, 18 de Junho de 2010) foi um escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português.

Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago é considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

quarta-feira, junho 09, 2010

"Retrato, vós não sois meu"...


´
MOTE

Retrato, vós não sois meu.
Retrataram-vos mui mal:
que, a serdes meu natural,
fôreis mofino como eu.

GLOSA

Inda que em vós a arte vença
o que o natural tem dado,
não fostes bem retratado,
que há em vós mais diferença
que do vivo ao pintado.
Se o lugar se considera
do alto estado que vos deu
a sorte, que eu mais quisera,
se é que eu sou quem de antes era,
retrato, vós não sois meu.

Vós na vossa glória posto,
eu na minha sepultura;
vós com bens, eu com desgosto;
parecei-vos ao meu rosto,
e não já à minha ventura.
E pois nela e vós erraram
o que em mim é principal,
muito em ambos se enganaram.
Se por mim vos retrataram,
retrataram-vos mui mal.

Mas se esse rosto fingido
quiseram representar,
e houveram por bom partido
dar-vos a alma do sentido
pera a glória do lugar,
víreis, posto nessa alteza,
que em vós não há cousa igual,
e que nem a maior mal
podeis vir, nem por baixeza,
que a serdes meu natural.

Por isso não confesseis
serdes meu, que é desatino
com que o lugar perdereis.
Se conservar-vos quereis,
blazonai que sois divino;
que, se nesta ocasião
conhecessem que éreis meu,
por meu vos deram de mão,
..................
fôreis mofino, como eu.


Luís de Camões, serigrafia editada pelo Centro Cultural de Almada, no 4º centenário da morte do poeta, 10 de Junho de 1980. Reprodução do "Retrato feito por Fernando Gomes, o único retrato do poeta que se diz ter sido tirado do natural"

terça-feira, junho 08, 2010

Imaginária Onda


Naufraguei em todos os
abismos da mente

Fui flor de lótus
nos Jardins de Bizâncio

Lágrimas salgadas
de Adamastor

O quinto vórtice
da pirâmide

Arco gótico de
catedral

Imaginária Onda

Cálice de doce
cicuta

Redenção de espírito
antigo

Montanha voadora
cipreste contador da
história
do mundo

Fábula encantada
deusa da luz
mulher de múltiplos seios
harpa de ciclope

Imaginária Onda

Tempestades de amor
feiticeiro da maré
sonho dos ventos
sacerdotiza da lua
guardião do espaço
volúvel forma
de néctar
veneno de Nero
serpente de Medusa
esperança de Pandora
tapete mágico
lâmpada de Aladino
gárgula de Nôtre-Dame


António Boieiro

Debaixo do Bulcão poezine
Número 18 - Almada, Junho 2002

No vídeo (do canal http://www.youtube.com/user/metoscano):o autor declama este poema durante uma sessão mensal de poesia vadia - Almada, 28 de Janeiro de 2008.

Paradigma intercalar



A voz

olha surda,
cala e grita
sangue da vida.
As mãos
são setas,
desertas,
por tocar.
O peito
desatina acelerado,
arritmia constante.
E a estrela
brilha sinais
radiosos por
beijos distantes.
O sabor é intenso,
interminável...


Gabriel 97

Debaixo do Bulcão, poezine

Número 15 - Almada, Junho de 2001

sexta-feira, maio 07, 2010

Colaborações para a próxima edição: enviem até 15 de Maio

Debaixo do Bulcão está a preparar a edição 38, a sair em Junho. Enviem as vossas colaborações: poesia ou prosa, não muito extensos (dada a limitação no número de páginas), bem como desenhos ou ilustrações que possam ser reproduzidas em fotocópia.
DATA LIMITE: 15 DE MAIO.
debaixodobulcao@netcabo.pt

sábado, abril 24, 2010

Tanto mar


Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo pra mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também que é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

Chico Buarque de Hollanda

(poema - canção de 1975, composta a propósito da revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974)

sábado, março 27, 2010

Papo de Índio, poema de Chacal lido por Sylvia de Montarroyos

Veiu uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui eles disserum qui chamava açucri
aí eles falarum e nós fechamu a cara
depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo
aí eles insistirum e nós comemu eles.

Chacal

Sobre o autor e a sua época literária:

http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=519

Poema dito durante os trabalhos do painel "Ao Encontro das Poéticas Contemporâneas", no 1.º Encontro de Poetas do Mundo em Almada.

sexta-feira, março 26, 2010

Um bulcão muito handicraft


A edição 37 do Debaixo do Bulcão poezine está finalmente impressa e pronta a circular.

São 24 páginas, no habitual formato A5 (ou, mais rigorosamente, A4 na horizontal, dobrado ao meio e agrafado), em fotocópia a preto e branco.

Esta edição apresenta-se aos leitores com um visual de fanzine "clássico", muito handicraft. Foi paginada com recurso ao velho método de corte-e-cola.

Contém textos de Affonso Gallo, Alexandre Castanheira, António Vitorino, Baltasar Mingo, BB Pásion, Helga Rodrigues, João Meirinhos, Luís Milheiro, Madalena Barranco, Minda, Mônica Quinderé, Nuno Rocha, Rui Tinoco, Sídnei Olívio, Tere Tavares. Ilustrações de Teresa Câmara Pestana (editora do Gambuzine - http://www.gambuzine.com/) e Helga Rodrigues. Capa e paginação de António Vitorino.

Este número começa a ser distribuído hoje, no 1º Encontro de Poetas do Mundo em Almada (Convento dos Capuchos, Caparica).

Conta com o apoio (impressão) da Câmara Municipal de Almada - e, naturalmente, de todos os que (agora e desde 1996) têm ajudado a levar por diante este projecto.

O editor do Debaixo do Bulcão poezine agradece a todos os que têm - de muitas formas - apoiado o projecto e as edições. Mas, no que diz respeito a este número 37, deseja manifestar o seu agradecimento, em particular, a Adelaide Silva e Margarida Catarino (da organização do encontro de poetas); Teresa Câmara Pestana (pelos desenhos que cedeu para publicação); Jorge Figueira e Nuno Nascimento (que ajudaram a resolver problemas de última hora); e, por último mas não menos importante, ao vereador António Matos, da Câmara Municipal de Almada (pelo apoio da autarquia a esta edição).

domingo, março 21, 2010

A poesia esteve na rua...

21 de Março de 2010. Intervenção na Praça São João Baptista - no âmbito do 1º Encontro de Poetas do Mundo em Almada - par assinalar o Dia Mundial da Poesia. O grupo de "performers" foi surpreendido por uma criança que inisitiu em improvisar os seus próprios poemas! E muito bem o fez - como se pode apreciar neste vídeo!

VINTE E UM DE MARÇO - DIA DA PRIMAVERA, DA ÁRVORE, DA POESIA E SEMPRE DA LIBERDADE


Primavera
Nascer renascer
semear para germinar
sair do negrume da subterrânea terra
alegrar-se de uma folha
de mais folhas
a alindar a superficial terra
e crescer e florir
é a terra a primaverar-se
de esperança
é a seiva a aniquilar
desânimos e cansaços
a aorta da vida a vencer

Já fui frágil
mas cresci e vigorei-me
sou forte de tronco
e ramos
e mesmo quando perco
folhas
aguardo pacientemente
o primaveril fortalecimento
que dos botões minúsculos
brotará
e inundará de certezas
as minhas veias
meu berço de futuro

Poesia
não tem estações
é sempre primavera
prima da luz
vera e indesmentível
imaginação humana
correndo no leito infinito
do ribeiro do tempo
das sementeiras
do revigoramento das árvores
e do futuro,
que é só caule
mas vai ser tronco
que me vai deixar trepar
até ao alto
para de lá ver finalmente
todas as luminosas cores
da liberdade


Alexandre Castanheira

Debaixo do Bulcão poezine
Número 37 - Almada, Março 2010
GALHOS ABERTOS
Enraizei-me sobre a terra
e ofertei folhas e flores
aos quatro braços do vento.
Implorei água
de galhos abertos
e tombei no leito de fogo
de um lago seco.
Arranquei
os pés
da lama
e a chuva
veio
e lavou
uma
alma humana.

Madalena Barranco
http://flordemorango.blogspot.com/
Registro da FBN/EDA

(a propósito do Dia Mundial da Árvore e da Floresta, 21 de março)

Encontro de poetas lusófonos em Almada

Um momento do primeiro dia. 20 de Março de 2010, Convento dos Capuchos.

sexta-feira, março 19, 2010

1.º Encontro de Poetas do Mundo em Almada - 20 a 27 de Março


A primeira edição de Poema - Encontro de Poetas do Mundo em Almada decorre a partir de amanhã e durante dois fins de semana, no Convento dos Capuchos. Debaixo do Bulcão criou um blogue, não-oficial, para divulgar o evento e acompanhar os trabalhos. Nesse espaço irão encontrar informação actualizada e reportagem dos locais onde se desenvolvem as actividades do encontro.



As tuas palavras
revelam a verdade
que não quis admitir.
A tua verdade.
Deixa-me dizer-te
a minha...
Será. Não te amei na
vez de ninguém.
És a fotografia
calma e inspirante
de uma fuga sentida.
Não te usei.
Amei-te sim à luz daquela
fogueira, nos risos trocados.
No cansaço das
noites sem dormir.
Amo-te agora
não procurei o teu
corpo. Procurei a
tua alma.
E a minha estendeu-se
para ti.
Achas que fingi?



Raquel

Debaixo do Bulcão poezine
Número 2 - Março 1997

(grafismo de Luísa Trindade)


Quero fugir
Mas as minhas pernas
Não deixam...
Quero gritar
Mas a minha voz morreu...
Sinto-me leve como a pena
Que em tempos segurei na mão
E pesada comop o chumbo
De correntes imaginárias
Que me aprisionam!
Este mundo não é meu
E ele sabe disso...


Ana Silva

Debaixo do Bulcão poezine
Número 2 - Almada, Março de 1997


O relógio situado
dobrando o papel
escrevinho palavras sem nexo
em sentido angular
óptica inerente ousado nú
despida da casca
gema dos rúbis amanheceres

na cama
depois do Éden
redescoberto
humanizada estratosfera
nesse cume, meu everest

antes do supra-sensível
transcendente universo
ostras e pérolas
últimos vermes
dos oceanos terrestres
flui tua sensação
nestas tão prisões
muralhas espirituais.


João Paulo

Debaixo do Bulcão poezine
Número 2 - Almada, Março de 1997

segunda-feira, março 15, 2010

Fiel amigo (ou a história de um cão chamado bacalhau)


Aos quatro anos troquei o meu avô por berlindes
Aos sete troquei a minha irmã por uma pistola
Aos nove a minha avó por um saco de pevides
Aos treze o meu tio pela primeira falta à escola
Aos catorze a minha tia pelo meu primeiro beijo
Aos quinze o meu pai pela primeira bebedeira
Aos dezasseis o meu melhor amigo por um desejo
Aos vinte o meu único amor por uma brincadeira.

Fiquei cheio de coisas, que de muito me serviram!
Claro que sem pai, sem mãe e sem tia
Foi por isso que não troquei o meu cão
(precisava de alguém que me fizesse companhia)



João Couvaneiro

Debaixo do Bulcão poezine
Número 2 - Almada, Março de 1997
(grafismo de Luísa Trindade)

sábado, março 13, 2010


Amor meu, se morro e tu não morres,
amor meu, se morres e não morro,
não demos à dor mais território:
não há extensão como a que vivemos.

Pó no trigo, areia nas areias,
o tempo, a água errante, o vento vago
nos transportou como grão navegante.
Podemos não nos encontrar no tempo.

Esta campina em que nos achamos,
oh pequeno infinito! devolvemos.
Mas este amor, amor, não terminou,

e assim como não teve nascimento
morte não tem, é como um longo rio,
só muda de terras e de lábios.


Pablo Neruda

XCII, de "Cem Sonetos de Amor"
(tradução de Carlos Nejar,
edição L&PM Editores S/A
Porto Alegre, 2001)

segunda-feira, março 08, 2010

Maria Campaniça



Debaixo do lenço azul com sua barra amarela
os lindos olhos que tem!
Mas o rosto macerado
de andar na ceifa e na monda
desde manhã ao sol-posto,
mas o jeito
de mãos torcendo o xaile nos dedos
é de mágoa e abandono...
Ai Maria Campaniça,
levanta os olhos do chão
que eu quero ver nascer o sol!


Manuel da Fonseca
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Lopes_Fonseca

ilustração: Ceifeira,
de
Manuel Ribeiro de Pavia
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Ribeiro_de_Pavia