quarta-feira, outubro 31, 2007

Marquesa de Alorna: um soneto e duas notas biográficas

Esperanças de um vão contentamento,
por meu mal tantos anos conservadas,
é tempo de perder-vos, já que ousadas
abusastes de um longo sofrimento.

Fugi; cá ficará meu pensamento
meditando nas horas malogradas,
e das tristes, presentes e passadas,
farei para as futuras argumento.

Já não me iludirá um doce engano,
que trocarei ligeiras fantasia
sem pesadas razões do desengano.

E tu, sacra Virtude, que anuncias,
a quem te logra, o gosto soberano,
vem dominar o resto dos meus dias.


Marquesa de Alorna
(Lisboa, 31 Outubro 1750 - Lisboa, 11 Outubro, 1839)

Escritora portuguesa.
Leonor de Almeida Lorena e Lencastre, 4.ª marquesa de Alorna, é uma das mais notáveis vozes do pré-romantismo em Portugal. Neta, por parte da mãe, dos marqueses de Távora, executados pela justiça do marquês de Pombal devido ao seu envolvimento numa conspiração contra o rei D. José I, é, em 1758, enclausurada no Convento de Chelas, de onde é libertada dezanove anos depois, em 1777, após a queda política do marquês. No entanto, a sua prolongada reclusão é o principal motivo para a esmerada formação literária e científica que recebe. Leituras de Rousseau, Voltaire, da Enciclopédia de Diderot e d'Alembert, abrem o seu espírito vivo e inquieto às ideias do iluminismo francês.
Casa com o conde de Ovenhausen, oficial alemão que viaja pela Europa, do qual fica viúva aos 43 anos. Apesar das dificuldades económicas que a viuvez lhe acarreta, a sua residência transforma-se num foco de ebulição cultural, onde se debatem as novas ideias políticas e também as novas correntes estéticas e literárias.
Bocage e Alexandre Herculano, em períodos diferentes, são dois dos frequentadores do seu salão. Sob o nome árcade de Alcipe trabalha em traduções do latim (a Arte Poética, de Horácio, por exemplo), do alemão (textos de Christoph Wieland), do inglês (o Ensaio sobre a Crítica, de Alexander Pope) e do francês (textos de Lamartine), cultiva a epistolografia (Cartas a Uma Filha Que Vai Casar) e escreve poesia.
Recreações Botânicas, poema em seis cantos dedicado às «Senhoras Portuguesas», prenuncia já o sentimentalismo romântico que avassalará a literatura anos mais tarde. A sua poesia está reunida nos seis volumes das Obras Poéticas da Marquesa de Alorna (1844).

(Informação do site Vidas Lusófonas:
www.vidaslusofonas.pt/marquesa_de_alorna.htm)

Em “Gente de Letras com vínculo a Almada”, refere-se a ligação da poetisa a esta cidade, nos seguintes termos:

A família possuía em Almada, na então Rua Direita (hoje Capitão Leitão), o Palácio de Fronteira, onde Alcipe vinha passar longas temporadas, após a queda do Marquês de Pombal. Muito esmoler, em Almada ficou conhecida por “Mãe dos Pobres” segundo o escritor Mário Domingues, manteve em Almada um «rancho de raparigas (...) pagando a uma mestra para lhes ensinar literatura, escrita, costura e outras prendas próprias do seu sexo»

(“Gente de Letras com Vínculo a Almada”, de Vítor Aparício, Diamantino Lourenço, Luís Alves Milheiro, Abrantes Raposo e Artur Vaz; edição SCALA, 2004)

terça-feira, outubro 30, 2007

Alma (da)

Passei hoje na cidade do costume com outros olhos. Na minha cidade.
Olhos de ver. Parei. Hoje vi a minha cidade. Pus-me com olhos de ver
na cidade que levo no coração para todo o lado. No coração. A minha
cidade, que tem alma e que pisca o olho a Lisboa.
Sentei-me no chão das estórias da história que passou por ali.
Estórias que pintaram a Alma das cores que cheiram a Tejo. E sonhei.
Acordou-me a inveja da miuda que saltava à corda na rua. Saltava à
corda, com a alma cheia de sorrisos despreocupados. Ia ficar ali todas
as horas do mundo porque não sabia ver horas. E só tinha as horas
todas do mundo. Todas as horas do mundo para ela, naquela cidade de
ruas estreitas. Todas as horas do mundo para saltar à corda.
As luzes acenderam-se e a noite foi trazendo o vento. Vim ver a rua
e senti saudades. Saudades de quando um choro gritado era imperativo
e panaceia, porque alguém resolvia que o fosse ali, logo. Saudades do
beijinho da mãe, que fazia a dor passar.
Saudades da boca lambuzada de chocolates e gelado. Saudades de não
saber ver as horas. Saudades repetidas.
E de mais gelados e de mais chocolate. Saudades de brincar, na
calçada, onde esfolava os joelhos, até não haver sol. Saudades dos
amigos imaginários com quem nunca mais falei. Saudades de mim antes
de ser este eu de agora.
Saudades de me encontrar, perdida na minha minha Almada. Que tem
cheiro de poesia e de coisas a que os miúdos pequenos brincam.
Melancolia esquisita, de quem vai embora mas fica sempre, sempre, com
uma fotografia bem dobrada dentro do peito.


Joana Fernandes

parvoicesminhas.blogspot.com

(“Texto Palmadense”
publicado na P’almada, revista editada pela Câmara Municipal de Almada.
Edição de Novembro 2007)

quinta-feira, outubro 25, 2007

Sugestões para o fim de semana

Dança contemporânea de Angola no DocLisboa

"Outras Frases", documentário de Jorge António sobre a Companhia de Dança Contemporânea de Angola, passa na sexta-feira, dia 26, às 23h00, no Grande Auditório da Culturgest.
«Através da pesquisa e reinterpretação de elementos tradicionais, a coreógrafa e bailarina angolana Ana Clara Guerra Marques tem procurado, ao longo dos últimos vinte anos, criar novas estéticas e linguagens para o desenvolvimento de uma dança contemporânea angolana. Jorge António, que foi produtor executivo da Companhia de Dança Contemporânea de Angola entre 1995 e 1999, mostra-nos em "Outras Frases" o trabalho artístico e pedagógico da bailarina, tendo como pano de fundo a história política e social de Angola.»

Programa do DocLisboa:

Dança contemporânea de Almada

Também na sexta-feira, a Companhia de Dança de Almada apresenta a 15ª edição da Quinzena da Dança. Vai ser às 21h30, na Fnac (Almada Fórum), «antecipando excertos de espectáculos e vídeo-dança, numa noite que dedicamos a todos quantos nos
acompanharam nestes anos de edições»
.


Mais informações em:


Encontro de escritores em Torres Vedras

Ainda este fim de semana (26 e 27), realiza-se o primeiro Encontro de Escritores de Torres Vedras.



Encontram o programa detalhado deste evento no blogue Almada Cultural:

sábado, outubro 20, 2007

Debaixo do Bulcão: nova edição em Dezembro!

(ilustração de Sturrefsit Adjukaatrix, para Debaixo do Bulcão poezine número 4 – Julho 1997)

Estamos a preparar a edição 31 do Debaixo do Bulcão poezine, e contamos com a vossa colaboração.
Enviem-nos os vossos textos, até 10 de Novembro, para

debaixodobulcao@netcabo.pt

Debaixo do Bulcão é um fanzine de poesia (formato “A4 dobrado ao meio”), impresso em fotocópia (como um fanzine que se preze, não é?) e distribuido gratuitamente, em diversos da cidade de Almada.

Condições de participação?
Publicamos textos de poesia ou prosa, sem selecção prévia. O que significa que podem escrever sobre o que muito bem entenderem, com a qualidade que será sempre a que vocês próprios considerarem (descansem, que nós não somos “críticos literários”), no formato que vos der mais gozo, ou mais jeito....
Impomos, apenas, duas condições para publicação:
1 - Que os textos não ocupem mais que o equivalente a uma página em formato A4, escrita em Times New Roman, corpo 12 . É que não temos folhas de papel em quantidade suficiente para imprimir tudo o que nos apeteça... (Nota: isto são “valores aproximados”. Se o texto tiver um bocadinho mais do que isso, ou se não for nesse tipo de letra, também podemos aceitar, desde que tenhamos espaço.)
2 - Por favor, não nos apareçam com ideias racistas, xenófobas ou fascizóides. Este não é, de todo, o local adequado para esse tipo de coisas.

quinta-feira, outubro 18, 2007

Romeu Correia: vida e obra (1917 – 1996)


A propósito de uma exposição sobre o escritor almadense Romeu Correia (patente ao público no Arquivo Histórico da cidade, até 30 de Novembro), aqui ficam algumas palavras do próprio...


Romeu Correia conversando
com Fernando Correia da Silva
(excertos de uma entrevista
publicada no site Vidas Lusófonas)

- No Sábado Sem Sol fiz análise e crítica de costumes. No Trapo Azul fixei reflexos do quotidiano. - A costureirinha violada pelo patrão, não é?
- Isso! Baseei-me num caso real, que bem conheço.
- E os outros livros?
- No Calamento fiz caracterologia moral e psicológica. Na Gandaia abordei problemas da infância e da adolescência e também reflexos do quotidiano. No Desporto-Rei foquei um processo social em curso.
- O futebol a alienar o povo, não é?
- Exactamente! No Casaco de Fogo, na Isaura e no Sol na Floresta estudei problemas da mulher. Um escritor vai deixando na sua obra, numa construção voluntariosa e difícil, a sua visão da vida, a sua compreensão dos homens e da sociedade em que vive. Não escreve tratados de teoria literária, ou estética, ou política, ou sociológica. Nos meus livros - e nas minhas peças - tenho desejado fixar pedaços da vida e a minha grande alegria é que há pessoas que os têm achado quentes e prementes da vida real que me inspirou e eu quis servir.
- E onde é que escreves? Em casa?
- Em casa e fora de casa. Olha, em Lisboa, passo horas a escrever no BOM, um Café que fica ali na esquina da Betesga com o Poço do Borratem. Conheces?
- Sim, conheço, já te vi por lá algumas vezes. Diz-me uma coisa: acabaste de publicar Bonecos de Luz. É um romance sobre o Chaplin, não é?
- De homenagem ao Chaplin.
- E o que é que estás a escrever agora?
- Uma peça.
- Como é que se chama ou vai chamar-se?
- O Vagabundo das Mãos de Oiro.


Texto completo em
www.vidaslusofonas.pt/romeu_correia.htm

terça-feira, outubro 16, 2007

Adriano Correia de Oliveira

(9 de Abril 1942 – 16 Outubro 1982)



A Trova do Vento que Passa.
Poema de Manuel Alegre, imortalizado nesta balada coimbrã,
por Adriano Correia de Oliveira.

A propósito, o poema que deu origem a este “fado de Coimbra” está em:
www.instituto-camoes.pt/cvc/poemasemana/05/01.html


Mais sobre Adriano Correia de Oliveira:
Biografia, na Wikipédia
www.cantaremosadriano.blogspot.com

sábado, outubro 13, 2007

De sal e bruma




Só eu fiquei
aqui parada
na noite agreste
desesperada.

Só eu fiquei
de pedra e mar
com este búzio
no meu olhar.

Só eu fiquei
de sal e bruma
com este canto
feito de espuma.

Feito de espuma
feito de nada.
sou a criança
inconsolada.



Maria Rosa Colaço


(em "Alma(da) Nossa Terra",
colectânea de poesia organizada por Ermelinda Toscano.
Edição SCALA. Almada, Março de 2006)



Maria Rosa Colaço
(N. Torrão, Alcácer do Sal, 19/09/1935 - f. Lisboa, 13/10/2004):
Maria Rosa Parreira Colaço Malaquias de Lemos formou-se em enfermagem pelo Instituto Rockfeller. Tirou posteriormente o curso de Magisté­rio Público. Em 1959 foi colocada como professora numa escola primária de Cacilhas, passando a residir em Almada, inserindo-se de imediato na vida cultural da vila, com destaque para a tertúlia artística do Dra­gão Vermelho, que realizou em 1960 a 1a Exposição de Poesia Ilustrada, da qual fez parte. Dois anos de­pois partiu para Moçambique onde leccionou durante cerca de dezasseis anos e exerceu em simultâneo a actividade jornalística nos seguintes jornais: Notícias da Beira, Notícias de Lourenço Marques e Voz de Mo­çambique. Em 1977 regressou à nossa cidade, dei­xando novamente a sua marca nos meios culturais e associativos de Almada. Colaborou com alguns escri­tores galegos, na Universidade de Vigo. Foi assessora da RTP, no Departamento de Textos e Criação Literá­ria, e colaboradora da revista Máxima e dos Diário de Notícias, Diário Popular e A Capital, onde mante­ve uma crónica semanal no jornal, durante vários anos. A Antologia A Criança e a Vida, um best-sellers que já atingiu a 40.â edição, projectou-a a nível nacio­nal e internacional, apesar da primeira edição ter sido destruída pela PIDE; foi traduzida em francês, catalão e inglês; foi tema para um bailado numa universida­de, no Brasil, e tese de doutoramento de uma profes­sora, em Cuba. Como poetisa viu os seus poemas serem gravados pêlos Trovante, Coro de Santo Amaro de Oeiras, Paulo de Carvalho, Luisa Basto, João Fer­nando, Samuel e Sérgio Godinho, entre outros. De­tentora de vários prémios literários, em 1994 recebeu a Medalha de Ouro de Mérito Cultural, da Câmara Municipal de Almada. Na sua terra natal existe uma rua com o seu nome e na Quinta da Alembrança, Feijó, é patrona da escola primária local

Fonte: "Gente de Letras com Vínculo a Almada", edição SCALA. Almada, Dezembro de 2004
Fotos da autora retiradas do blogue

sexta-feira, outubro 12, 2007

Novo livro de Bernardes-Silva (e um poema do autor, só para "abrir o apetite...")

Poesia Sonetada

é o título do novo livro do escritor Francisco Nogueira Bernardes-Silva.

A sessão de lançamento está agendada para este sábado, dia 13, às cinco e meia da tarde, na Sala Pablo Neruda, do Fórum Municipal Romeu Correia, em Almada.




Então, considerem-se todos convidados a aparecer por lá!




Para que voltes em breve


Mulher que de repente foste embora,
levada a longes terras pela Vida,
que esta te seja leve, divertida,
enquanto aqui meu corpo por ti chora.

Se acaso tu puderes em qualquer hora
voltar a ser só tu, desinibida,
recorda tudo o que antes da partida
tiveste deste poeta que te adora.

E, caso possas crer que, de entre tantos,
este é o sofrimento em que esmoreço
e rói o que é em mim vitalidade,

apela a teus demónios, a teus santos,
e faz com que eles ordenem teu regresso
tão breve quanto é longa esta saudade!

F. N. Bernardes-Silva


Francisco Nogueira Bernardes-Silva nasceu em Lisboa, na freguesia de S. Jorge de Arroios, em 1930 e vive, actualmente, na Charneca de Caparica. Costuma dizer que, como uma desgraça nunca vem só, tinha de nascer no dia em que Camões morreu (10 de Junho).
Em 1957 concluiu o curso de Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico (Lisboa) e exerceu a profissão sempre na indústria transportadora, desde a metalomecânica ligeira à fabricação de pneus. Foi emigrado em Moçambique e Angola durante cerca de 20 anos. Apresentou um total de quatro comunicações em congressos de engenharia.
Dedica-se à poesia desde a pré-adolescência, mas somente em 1991 foi publicado o seu primeiro livro: Poesia Extravasada (ed. Helver).
Tem colaborado activamente no projecto cultural Poetas Almadenses desde o seu início, participando com regularidade nas sessões de “Poesia Vadia” do Café com Letras, depois café Sabor & Art, em Cacilhas, também já, lamentavelmente, encerrado.Publicou o caderno Uma Dúzia de Páginas de Poesia n.º 8. É citado na antologia Alma(da) Nossa Terra e participa na colectânea poética Index Poesis, ambas organizadas por Ermelinda Toscano.

quarta-feira, outubro 10, 2007

Dois poemas de Cabo Verde (revista Raizes, 1977)

Como eras

A quem não disse


Eras como os brincados
que fazia
na praia da minha enseada

Eras como meu delírio
dar ao vento papagaio
todo feito de papel

Eras como a cana
a linha
o anzol
nas tarde d’outrora

Eras como o que sonhava
quando só o mar sorria
aos sorrisos dos meus lábios

Eras como ontem do meu hoje
que trazia como te trago
no fundo-ser vivificado
morno povoado de casas simples.


Tacalhe




Empresários


máquinas cortando atalhos
rasgando tubos
troncos caindo ao som dos galhos
cobrindo áreas
barracos com pernas mansas
pelos ares

balseiros carregando planos
virando areia
represa fácil de água muita
comendo terras
em presa moto no tronco grosso
vencendo serras

empresários tomam mares de whisky
bem frios calados estouram lares
para o gado engordar
empresam rios
na cidade a carne humana
pele e osso


Clodomir Monteiro



Poesia de um tempo em que não se publicava mais “por falta de papel”!...

Estes poemas estão incluídos na edição número 2 da revista “Raizes”, publicada em Abril de 1977, na Cidade da Praia, pela Imprensa Nacional (de Cabo Verde, obviamente).
Por se tratar do único número que possuo desta revista, não posso adiantar muita informação. O que sei, e vos transmito, é o que está na ficha técnica da publicação:
Director, Arnaldo França; Administrador, Orlando Mascarenhas; textos de Dulce Almada Duarte, H. de Santa Rita Vieira (ensaios); Teixeira de Sousa, Maria Margarida Mascarenhas, Arménio Vieira (prosa de ficção); Jorge Barbosa, Oliveira Barros, Ovídio Martins, Jorge Carlos Fonseca, Arménio Vieira, Tacalhe, Helder Proença, Clodomir Monteiro, Luis Romano (poesia); Félix Monteiro, Osvaldo Osório, Arménio Vieira (crítica).

Interessante é também o editorial (não assinado):
«Não cumprida a promessa de periodicidade trimestral logo ao segundo número, sentimo-nos, porém, compensados de quantas frustrações passadas por não terem sido nem a falta de resposta dos intelectuais caboverdeanos ao nosso apelo nem a ausência de leitores que, ao contrário, obrigaram ao aumento da tiragem, os responsáveis por esta demora. Razões de natureza técnica assentes principalmente na extrema dificuldade de obtenção de papel, adiaram o aparecimento deste número.
(...)
Esperamos que os leitores e colaboradores compreendam as dificuldades inevitáveis com que lutamos e de que o aspecto gráfico destes números é tão significativo testemunho, mas que a breve trecho procuraremos superar.»

terça-feira, outubro 09, 2007

Citações de um coração

Desde o dia que eu nasci, acordo;
e vejo-me dentro de um milagre:
Sei, que só o deixarei de o ver,
Um dia quando morrer.
Deixo a todos as minhas poesias,
e a sublime paixão de escrever
que vivo todos os dias.

Deixo-vos a dor referencial,
para que o bem seja notado.
Deixo-vos o sofrimento,no fundo de uma tela,
aquela, que nos leva à perseverança:
alerta-nos e adverte-nos neste mundo,
de todos os males de consciência.
Sem ela, nunca conheceriamos a complacência.

Deixo-vos a beleza,
alegria e a fragrância da natureza.
o conhecimento e a vitalidade
e o alcance da plena consciência…
e o enxergo dos olhos e da alma de realidade
que se encontra escondida para trás a aparência
e que materializa os nossos pensamentos;
com interesses, egoísmo e toda a descrença,
a pior forma, e a mais adversa!

E nunca se esqueçam, que para se receber,
Primeiro é preciso dar e saber atrair,
em seguida saber irradiar…
Deixo-vos a tristeza,
Para que a vossa alegria seja apreciada.
E a carência vos ofereça a abundância,
Para que a vossa vida tenha significado.


Pedro Alves Fernandes


(Mais poemas deste autor
no blogue Pintura Astral)

sábado, outubro 06, 2007

Metropolitano mortal

Uma enorme bota preta pisou-me imperativamente o dedo pequeno do pé. Um cotovelo bicudo como uma espada atingiu-me sadicamente a cintura. Um queixo borbulhosamente oleoso atirou-se contra a minha nuca. Os meus cabelos embaraçaram-se ofendidos enquanto um nariz perdido lutava para fugir daqueles fios compridos que o prendiam. Senti um punhado de cabelos ser arrancado brutalmente do meu couro cabeludo. Um joelho enfadonho empurrou-me neuroticamente para a frente e o meu nariz esborrachou-se rapidamente contra um sovaco grande e fedorento enquanto o meu corpo era comprimido entre um esqueleto pontiagudo e um monte de carne tenra.
Estava no METRO!
O comboio arrancou suavemente permitindo que o meu corpo deslizasse bizarramente junto com os outros. Roguei pragas. Fechei os olhos para os abrir logo de seguida quando um pingo morno e sujo, que deslizava como um patim ao longo do sovaco grande, veio pousar na ponta do meu nariz. Era um abuso. Que direito tinha aquele pingo desconhecido de repousar na ponta do meu nariz sem sequer pedir autorização? Resolvi, pois, impor a minha indignação e abanei a cabeça como fazem os cães quando se sacodem da água.
O pingo levantou voo do meu nariz escolhendo como poiso um lóbulo preto de uma orelha que estava a um metro de distância. Os olhos flamejantes do dono da orelha pousaram em mim. Deitaram-me faíscas amarelas que paralizaram os meus olhos e fizeram tremer as minhas pernas. A boca que pertencia àqueles olhos arfava e babava-se à medida que um polegar onde se viam ácaros esmagava contra um indicador o fatídico pingo. Foi o fim deste.
Quanto ao assassino do pingo, começou a mexer-se na minha direcção. Tentei sair dali mas o máximo que consegui foi enterrar-me ainda mais na carne tenra que estava atrás de mim. As portas da carruagem abriram-se e o assassino do pingo deitou-me um sorriso e desapareceu. Mas não sozinho. Também o esqueleto pontiagudo, a carne tenra e o sovaco grande desapareceram.
Os meus olhos rasgaram um lugar. Corri. Sentei-me. O lugar estava quente. À minha frente um bébé rebentava as cordas vocais à medida que as suas bochechas se iam colorindo de um vermelho púrpura salpicado de pintas verdes escuras. A um canto uma mulher com pelos na cara coça uma verruga na testa. Um espirro barulhento chamou a atenção dos meus tímpanos: duas crianças debatiam-se por causa de um punhado de cabelos que devia ter pertencido a alguém. Enfim, reconheci aquele punhado de cabelos. Junto à porta um rapaz careca mas de peito pelado como um macaco mastigava impiedosamente uma pastilha ao mesmo tempo que fazia balões quadrados que se iam rebentando uns após os outros.
Atónita com o cenário, achei melhor sair.
As portas abriram-se mais uma vez e uma bota da tropa correu na direcção das minhas solas e estendeu-me ao comprido no chão. Ouvi o comboio ir-se embora levando o rapaz dos balões, o bébé, as crianças e a velha da verruga e, quando levantei a cabeça e olhei em volta, um puto encostado à parede ria-se de mim.
A minha cabeça caiu. Senti as pálpebras fecharem-se-me e o sangue a abanar-me furiosamente as veias. Tentei levantar-me e não consegui. O meu corpo estremeceu como um sismo e um grande espasmo fez saltar o meu coração vermelho cá para fora.
O resto não me lembro.





Sofia Anjos
Debaixo do Bulcão poezine
Número 5 - Almada, Setembro 1997

(Ilustração: Luísa Trindade)