quarta-feira, setembro 29, 2010

Quase num outro país qualquer



Há muito tempo que ele tanto estranha a bondade como a maldade humana.
Foi por isso que escolheu viver num dos bairros mais feios e pobres da cidade.
Ali sabe que não é invejado nem bajulado por ninguém, nem tão pouco olhado de lado. É um indiferente, um quase invisível, como todos os outros habitantes, pretos, brancos, castanhos ou cor de rosa.

Passa a vida a pintar, porque é o que melhor faz e também o que mais o satiasfaz.
Tem compradores certas das suas aguarelas sobre Lisboa, de Alfama à Lapa. Os óleos - sem procura - enchem as paredes e apenas são conhecidos pelos raros amigos. Também pinta interiores de casas, quando os bolsos estão mais vazios e o empresário João Pintor precisa de reforços.

Achou estranho os aviões voarem tão baixo a meio da manhã, foi por isso que veio à janela. Não se assustou, como a senhora que descobriu imóvel no meio do passeio. Além de suar, tinha um ar assustado, como se pensasse que estava a rebentar uma guerra qualquer por aí.
Não achou piada ao medo da mulher idosa, muito menos ao barulho dos jactos, que conseguiram estremecer o cavalete e borrar ligeiramente a aguarela que estava a pintar.

Só à hora do almoço, quando passou pelo café, percebeu a "guerra" que se travava na Capital. Ao olhar de soslaio para a televisão, descobriu que o papa andava por aí, a fazer milagres.

O café estava mais cheio que o costume, para um dia da semana. Foi então que ouviu dizer que era feriado em Lisboa, graças ao tal rei dos católicos, que aparecia no filme com o presidente, mais angelical do que nunca.

Numa outra mesa, mais dada aos futebóis, os vizinhos preferiam o futebol à missa. Colocavam um tal Queirós no assador, enquanto faziam futurologia escura sobre o campeonato do mundo na terra do "Chaka Zulu". Não ganhavam um jogo. Queriam um tal Quim, um João Moutinho, um Martins, um Ruben qualquer coisa, um Makukula e ainda um Scolari na selecção. Rendeu-se ainda mais à sua ignorância, não sabia que havia portugueses com estes dois últimos nomes...

Antes de pagar o café, sorriu de felicidade por raramente ver televisão, ler jornais ou ouvir telefonia. A sua companhia continuava a ser o velho gira-discos e a música psicadélica dos anos sessenta e setenta.

Virou as costas ao filme de 12 de Maio e lá foi, para a sua casita, quase num outro país qualquer...


Luís Milheiro

Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

(Ilustração: desenho de André Antunes)

terça-feira, setembro 28, 2010


Citadino selvagem decidiu queimar
Todas as suas cartas
Enredadas em eufemismos de si:
Castas articulações de pós piedade que,
Após terem esganado muitos doutos flamingos,
Dá-vos destas
Ofegantes tremuras dentro da distância
Entre bruxas e arcanjos
- oh criaturas de labor descalço
viajando na fantasia mas sempre
com o coveiro às cavalitas -
sejam sabedoria de despropósito literário
nesta batedeira part-time sobre dádivas
- concessionário de comissuras
jamais premeditadas -
verga gaga e gabarolas;
chagas derrapadas à deriva
na parceria da polpa dum
alento morno e aconchegante;
com os lençóis todos descompostos como combinado
pela morbidez de tantos bocados de beijos
imbecilmente inertes
- retalhos de recordações -
no abismo da juventude
outrora viciosa,
outrora moribunda,
outrora dum limão sentimental e repugnante;
como singelo tumor cor de autópsia
- peripécias do desenrasca
a anis, cobalto e crude
quando dois corpos feitos mundo
decidem diluir-se nesta história.


Salmonela Pintassilgo


Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

(Ilustração de André Antunes)

domingo, setembro 26, 2010

Obsessão


dias perdidos em volta do que não volta
dias perdidos em volta do que se perdeu
porque se devia perder
porque doía e não devia
doía como uma fractura
sem tratamento
sem cuidado
e mesmo assim
esperava-se
e mesmo assim
chorava-se
quando se vai perdendo o rumo
o norte
a vontade
até a maior mentira
parece verdade


Carolina Rodrigues


Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

(grafismo de André Antunes)

Até já


De volta à esfera redonda, sento-me no chão
Nunca me dei bem com cadeiras.
São construções de vaidade e ostentação, perturbadores da realidade
Aqui no chão, posso estender-me sem a preocupação de cair
Aqui no chão, olho o céu e água
Aqui no chão, contrario a hereditária ceifeira
Aqui no chão, mastigo cereais sem leite
Aqui no chão, as expectativas são baixas mas a esperança é realmente verde
Aqui no chão, as pedras falam e as formigas folgam
Aqui no chão, a única agressão é provocada pela espera de um eclipse
Aqui no chão, as ideias não têm seguimento e os pensamentos confundem-se com nuvens
Daqui do chão, consigo ver-te e tocar o teu reflexo
Daqui do chão, a tua bandolete é amarela
Daqui do chão, ouço o teu sorriso
Daqui do chão, digo-te até já
É aqui no chão que vou esperar.
Daqui do chão, vou morrendo vivendo

Obrigado, são só devaneios
Não sei escrever, mas já sinto como gente grande


Tiago Espírito Santo


Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

O Infinito


Dentro do encanto das palavras
E do vento que rasga o nevoeiro
Encontro as velas dum veleiro
Desfraldadas numa bandeira
Com sonhos e utopias de poetas
E loucos de jaulas desenhadas
Para lá do horizonte entre as nuvens
Escondemos percursos de marés
E descobrimos o infinito do destino

Para onde nos levam as mãos da vida
Os cacos das conchas dos nossos búzios
Os corpos desnudados dos desejos
E a chama que apagamos todos os dias

Somos restos raros de percursos e silêncios
Fomos mortos que não se deixam liquidar
25 maneiras de sermos marionetes
Com tudo o que se cala na magia do fantástico
Só nos resta os náufragos da nossa história
E o vento que não leva o pensamento
E nos deita na memória

E nos corpos nus de todos os encontros


Victor Serra
27/1/2009


Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010

(grafismo de André Antunes)