quarta-feira, março 07, 2012

Como sabes


"Tímido como uma criança. Sou ignorante"
"O inverossímil em matéria de sentimentos é o sinal mais seguro da verdade."
(Liev Tolstói).

Ao relevo submisso do espelho admitiu sem negações outra de si. Sem expressão de noções ou julgamentos. Sem mágoas ou amarguras, isenta de culpa por talvez destroçar-lhes quaisquer ressentimentos. Alegrou a tristeza no segmento de um objetivo ou de um objeto para tudo o que suportava. Intrometeram-se luminescências que se fecharam abertamente nos florescimentos vindos de fora. E persistiam em diversos murmúrios. Como os dias iguais a todos os dias que ainda submergiam numa loucura feliz. Um acesso exterior e nada para partilhar, apesar do convite – o temor é perdedor assíduo da indiferença – a pior forma de amor que há.

A malha da insônia seria o anzol fosforescente do corpo indefeso. Perto dali morava um cedro cinqüentenário, um canto de corruíra, uma cerejeira onde alguém, com muito zelo, reservara sementes para lhe dar.

Afagou-lhe as pálpebras, os anéis dos cabelos, a face, as formas de pérola.
No seu abraço permitiu-lhe o abandono seguro de quem se sente amado.
Incondicionalmente. O quarto sempre à sua espera, o quadro de tulipas pousando
no coração azulado entre as paredes claras, o ensejo rosado a esperar-lhe o gosto singular, lençóis de algodão perfumados de maciez maternal. Uma ingênua liberdade toldava-lhe a tristeza adormecendo para reconfortar-se no amanhã, com um sorriso corajosamente inesquecível. Sobre uma luz difusa entre singelezas de fogo repetiu como uma canoa flutuante o langor que se perdera numa erva antiga, a cantiga que previa inteira e só por aquela noite a procurara como se soubesse não tê-la. “O inesquecível é o amor que sobra. Para algumas, e só para algumas coisas, que são para sempre.”

Aqueles olhos eram loucos e surdos. E eram também aqueles ouvidos com olhos. Porque há ouvidos cegos e fragores inaudíveis com olhares: E olhos mudos e lábios olhando as profusões invisíveis ao tato. O paladar pênsil do gesto sem lábios. Olhar sápido de olivas. E oliveiras repletas de retinas tocando o sol com brumas, com mãos de vinho... “que misteriosos olfatos escondeis além de vós? Precisarei de todos os sentidos ao mesmo tempo.” Ouviu um perfume qualquer que seu coração reconheceu, tocou-o de forma irreversível na escuridão, na proximidade ausente do momento que a prendia até que surgissem os delineamentos de consciência e subconsciência, o desconhecido perguntando se poderia resumir-se. Não com uma resposta qualquer. Tampouco com o retrocesso.

Sobrava-lhe o nada para expressar o mínimo, e não expor estranhamentos a caberem uns dentro dos outros – primaveras com floradas de gelo, verões sendo outonos mornos, invernos de calor a nevar no tropeço das nuvens. As oliveiras misturadas aos sândalos e madressilvas. Flores de laranjeira deslizando pelo tempo, entre as asas dos melros... um mero truque da imaginação, a memória talvez nem sua que se seguia por séculos.

E desse olfato surdo vê a completude indefinida em fractais. Nem tão abstratos assim, a imaginação do gosto lhe saliva a boca. “Não se lembrem de Pavlov. Houve uma vez em que me dei sais. Depois açúcares. Não há nada ou ...talvez alguma coisa aja fora de mim. Vejo novamente quando ouço e novamente toco quando olho. Outra vez me ouço quando degusto. E novamente me alimento quando tudo se mistura nesse inesgotável recurso de meia-estação.”

Multiplicou-se com rebeldia e graça por todas as frações da luz – no colo do ar e do tempo, como as areias juvenis... fecundando-se indefinidamente em oceanos pautados por um eco outro, do outro lado. O lado de dentro.


Tere Tavares

Texto publicado em
Debaixo do Bulcão poezine nº 40
Almada dezembro de 2011

Imagem: pintura de Tere Tavares em
http://m-eusoutros.blogspot.com/
(reproduzido com o consentimento da autora)

domingo, janeiro 22, 2012


O tempo passa.
A mão reescreve o sentimento de outras mãos num papel amarrotado. O teu olhar solidifica o vazio da minha visão e o meu corpo treme um pouco. Um olhar assim torna-se mecanismo de desilusão.
Como eu gostava ainda de saber escrever-te, o real é como uma máscara e sinto que perdi anos sem fim a preparar uma vida aqui e ali interrompida pela distância.
Acho que cheguei aquele ponto em que desistir ou continuar são o mesmo precepício onde todos os desejos se tornam realidade...

E então a queda.

Vigio ilhas separadas onde habitamos com o riso abafado num murmúrio perdido no espaço. Um mundo existe ainda neste riso vazio de sentimento e evoca uma dança.
Dançaremos talvez um dia no espaço da minha morte. Os gestos desses movimentos mostrar-se-ão com toda a inocência para provocar o desassossego.
Fogem-me as palavras dos bonitos poemas mas a culpa é do sol que ilumina o caminho e assim sei de cór o que me espera no fim.
Porém o tempo passa e tudo se esquece e não foi só por acaso que hoje não falei nenhuma vez da palavra amor.

Sem data,

Vang

Debaixo do Bulcão poezine nº40
Almada, dezembro 2011

crónicas do mundo - a linha do tempo

há quem diga que os dias são todos iguais. talvez num determinado momento assim pareça. quando o sonho anda escondido e a vida se limita ao círculo da rotina dos dias quotidianos. mas não são. nunca foram.

há o dia em que nos pomos de pé. e andamos. e começamos a olhar o mundo olhos nos olhos. o dia em que deixamos de ter sorrisos inocentes. e somos o centro do mundo. do pequeno mundo que é sempre o que nos rodeia. o dia do primeiro dente. do primeiro banho, isolados. em que somos um direito próprio. o dia do primeiro arrufo. da birra dos sentimentos. que rapidamente se instalam e nos tornam diferentes dos outros animais. somos mais perigosos.

o dia dos primeiros passos rumo à escola. na descoberta de outros amigos. outras brincadeiras. o dia do primeiro exame. do nervoso miudinho. da insegurança. do primeiro beijo. que demorou não mais de três segundos, mas que nunca mais acaba. e que por ser o primeiro será sempre o mais perfeito. o dia dos primeiros jogos às escondidas. das corridas atrás das raparigas. da primeira ida ao cinema, ao teatro. da primeira saída. do primeiro pecado. num qualquer canto.

o dia em nos começam a crescer pêlos, onde antes tudo era liso. o dia em que achamos que somos homens quando passamos a fazer a barba. e não queremos. do primeiro concerto. da primeira entrevista de emprego. da descoberta de que afinal não somos todos iguais. e que há uns mais iguais que outros. da primeira namorada. da primeira mulher. o dia em que escrevemos cartas de amor. e as recebemos. depois em que apenas as recebemos ou as escrevemos. e o dia em que nem uma coisa nem outra.

o dia do primeiro filho. o dia em que somos tios e mais tarde avós. e repetimos novamente todos os rituais. o dia do primeiro cabelo branco. da primeira ruga. o dia em que os pêlos vão caindo. e o dia em que são outros que cuidam de nós. tal e qual, como quando éramos crianças. esses, são os dias em que já pouco importa. a não ser se seremos pó ou cinza.

e depois há os dias assim, como hoje. em que falamos dos dias do futuro. que são já passado. porque afinal o presente, não existe. é apenas uma linha imaginária do tempo.

almada, in crónicas do mundo, agosto/2011


a faustino

Debaixo do Bulcão poezine nº40
Almada, dezembro 2011

sexta-feira, janeiro 06, 2012

Sem título


O piano impõe a sua mudez
desafinada
enquanto as horas atropelam,
em serenos sussurros,
a impavidez do corpo.
O teto afunda-se
sob a pele,
aconchegando a dor
em suaves volúpias.
Papel de embrulho
para ruínas biológicas.
Num aceno de coisa nenhuma,
retro escavo até ao osso
em busca da toupeira
que me come a vontade.
Mas logo me canso
e deixo-me ficar a
assistir ao banquete.

F.S. Hill
novembro 2011

Debaixo do Bulcão poezine nº40
Almada, dezembro 2011

O MELHOR AMIGO




Olho-te com carinho
Afago a tua alma
Sinto o cheiro do teu corpo…

Acaricio-te ao de leve
Tatuo o meu sentir na tua pele
Vejo-me nas tuas linhas…

Afasto a solidão
Sonho com o infinito
Encontro a felicidade…

Perco a noção do tempo
Partilho as tuas lembranças
Navego num mar de recordações…

Sinto-me livre só de te olhar
Mais segura e confiante
Aqui ou em qualquer lugar…

Estás sempre a meu lado
Ouves-me com atenção
Sem ti não sei viver…

És o meu melhor amigo
Aquele que nunca me abandona
Em quem posso sempre confiar…

LIVRO é o teu nome
Que pronuncio com prazer
E a quem amarei até morrer.

Minda

Debaixo do Bulcão poezine nº40
Almada, dezembro 2011