domingo, julho 11, 2010

Crónica de uma manhã de Agosto


Eu estava de férias e sem vontade de ter pressa para coisa nenhuma. Saí de casa, a meio da manhã, para ir tratar de um assunto ao 1º Cartório Notarial de Almada. Mas, como ia precisar de dinheiro, e tinha pouco, achei melhor passar primeiro por uma caixa multibanco. Por sorte, existe uma caixa multibanco mesmo ao lado do 1º Cartório Notarial de Almada.

Fui.

Não havia dinheiro na caixa multibanco. Resmunguei: que raio de maneira de começar o dia. Uma senhora de idade avançada, muito simpática e algo andrajosa, pareceu adivinhar os meus pensamentos. Então, chegou-se a mim, e explicou-me que aquela caixa multibanco já não tinha dinheiro. Antes que eu me desse por satisfeito com a explicação, ainda acrescentou:
- Já não há dinheiro na outra ao lado, também.
Eu ia agradecer-lhe a solicitude, mas ela prosseguiu com a explicação:
- Já não há dinheiro. Já não há dinheiro porque, desde manhã cedo, vieram aqui muitas pessoas levantar dinheiro. Veja lá o senhor que até faziam bicha. Faziam, faziam!... Nunca vi uma bicha tão grande para levantar dinheiro. Veja lá o senhor que a bicha ia até ali à esquina. Credo, até parecia que estava toda a gente à espera que o mundo acabasse hoje. Ai, parecia, parecia!... Senão, porque é que toda a gente havia de lhe dar para levantar dinheiro logo hoje, não me dirá o senhor?
Eu não sabia. Por isso não lhe disse. E ela:
- Era uma bicha para levantar dinheiro, que até parecia que estava o mundo para se acabar!
- Pois. Mas o que se acabou foi o dinheiro - respondi-lhe.
- E, já agora, o senhor não me pode dar algum dinheirinho para eu comer uma sopinha?
Juro que, se fosse não uma senhora mas um arrumador de carros fora da sua zona de serviço, eu não lhe dava nem um cêntimo. Mas, como era uma senhora idosa, simpática e meio andrajosa... Procurei na carteira e vi que, afinal, ainda tinha dinheiro suficiente. Dei à senhora uma moeda de cem escudos, para a ajudar a comer uma sopinha. Depois, pensando melhor, acrescentei à dádiva uma moedinha de 50 escudos, para agradecer a gentileza da senhora.
Agora ando a pagar gentilezas - pensei. Que bela maneira de começar o dia!

Mas eu tinha coisas importantes para fazer. Dirigi-me, então, ao 1º Cartório Notarial de Almada. Entrei. A sala estaria às moscas, se as houvesse: não havia. O que havia, sim, era duas senhoras a cavaquear com um senhor, encostados ao balcão - do lado de fora do balcão.
- Estou grávida. Será que posso olhar para o sol? - perguntava a mais baixota.
E riam muito. A mais espigadota tinha uma chapa de radiografia na mão e explicava profusamente à baixinha e ao senhor como é que o sobrinho mais novo tinha partido um dedo quando tentava quebrar nozes na porta da cozinha.
Deduzi que aqueles eram os funcionários do 1º Cartório Notarial de Almada.
O senhor, meio fuinha mas muito correctamente engravatado, cortou a conversa:
- Bem, vamos ter de arranjar maneira de dividir isso pelos três...
Repartir uma chapa de radiografia pelos três? Que ideia bizarra, pensei.
Para me fazer notado, emiti aquele ruído com a garganta, que as pessoas fazem às vezes quando querem ser notadas. Depois, falei:
- Bom dia. Eu venho fazer o reconhecimento de uma assinatura.

Só então eles pararam de falar, e olharam para mim com um ar muito surpreendido. Resisti à tentação de tocar em mim próprio, para me certificar de que não era um fantasma. A mais entusiasta (a que dava os pormenores sobre a maneira como o sobrinho fracturara a falangeta do dedo indicador esquerdo) olhou-me com uma tromba que, na altura, me pareceu maior e mais alaranjada que a tromba do elefante do jumbo de Setúbal. A outra, desconsolada, fitou-me como se reconhecer uma assinatura fosse a tarefa mais penosa de que se conseguisse lembrar naquele instante - ou como se tivesse acabado de receber a notícia de que o seu cãozinho de estimação tinha sido atropelado na Avenida Dom Nuno Álvares Pereira. Quanto ao homenzinho, que além de pequenino era meio achinesado, virou-se para mim com tal aspecto de ferocidade que, por momentos, julguei que ia desembainhar uma katana e e saltar-me para cima gritando banzai! Mas eu tenho uma imaginação algo delirante, é esse o meu mal. Além do mais, lembrei-me, os chineses não usam katana nem dizem banzai.
- Olhe lá, não podia ter vindo noutra altura, não? - perguntou-me a tromba de elefante do jumbo de Setúbal.
E eu disse-lhe a verdade:
-Não!
Surpreendentemente (ou talvez não) a minha réplica convenceu-os. Os três, à uma, começaram logo a tratar do meu assunto. E eu juro que nunca tinha visto burocratas trabalhar de maneira trão afincada e expedita. Quando me viram aviado e a dirigir-me para a saída, nem esperaram que eu pusesse o pé na rua. Saíram de trás do balcão, vieram colados às minhas costas até à porta do 1º Cartório Notarial de Almada - e ali ficaram, a decidir qual deles iria utilizar primeiro a chapa de radiografia onde se viam os ossos maltratados do sobrinho daquela mais entusiasta e trombuda.

Ai, pus-me a matutar: será que o mundo endoideceu de repente?

Como ainda queria comprar o jornal (que eu, em férias, ando sempre mal informado, e pretendia abrir hoje uma excepção) comecei a caminhar em direcção a um quiosque que eu cá sei. Andar clarificou-me as ideias. Afinal, se o mundo tem andado a enlouquecer aos poucos, não pode ter ficado maluquinho de repente. Esse pensamento reconfortante fez-me sentir... como direi?... reconfortado. Reflectindo um pouco mais no assunto, concluí que é a própria profissão de burocrata que faz com que os burocratas acabem por ficar com os neurónios meio atrofiados. É normal.
Parecia-me uma explicação razoável e fiquei contente, comigo e com o mundo.

Mas logo me sobressaltei novamente. É que, na rua, toda a gente estava a pôr na cara uns óculos de sol horrorosos. Que coisa estranha! Aquilo fazia lembrar os óculos usados pelos personagens de um filme de John Carpenter. Esses óculos (os do filme) permitiam, a quem os usava, distinguir, claramente e em qualquer local, os extraterrestres dos legítimos nativos deste planeta Terra. Fiquei preocupado, mas...

Pronto, lá estava eu outra vez com a minha imaginação delirante.
Ando a ver demasiados filmes de ficção científica, pensei. E, caminhando, cheguei ao quiosque.
Estava fechado.
Logo aquele quiosque, que nunca fecha, estava fechado nessa malfadada manhã! Reparei então no papel branco, colado com fita adesiva na montra do quiosque, onde estava escrito a marcador o seguinte:

ENCERRADO POR MOTIVO DE ECLIPSE

Eclipse? Qual eclipse?...

Eclipse do quê?

Pois era, o eclipse... E eu, estupidamente, não me lembrava.
Censurei-me: é o que faz não ler jornais. Nem ver televisão.
E agora?

Fiquei com uma vontade danada de comer um gelado. Fui ter com um senhor que estava a vender gelados na rua, e pedi-lhe um gelado. Ele estava de nariz no ar, com aqueles óculos de sol horrorosos que me pareceram qualquer coisa tão ignóbil que agora me abstenho de referir. E, de nariz empinado, sem se dignar baixar a cabeça para olhar para mim, perguntou-me:
- Temn mesmo de der agora?
E eu disse-lhe a verdade:
- Tem.
E ele, de nariz no ar:
_ Bom...
Baixou a cabeça. Tirou os óculos. Abriu a arca de gelados. Deu-me o gelado que lhe pedi. Entreguei-lhe o dinheiro e fiquei à espera do troco. Enquanto ele contava as moedas, senti um impulso iresistível e perguntei-lhe:
- Posso experimentar?
- O quê, os óculos? Ó amigo, experimente lá, mas só durante um bocadinho, está bem? É que eu não quero perder a melhor parte do eclipse.
Então, com um assomo de emoção indescritível, agarrei naqueles óculos inefáveis, enfiei-os na minha cara, empinei o nariz para o sol.

À volta, tinha-se juntado uma mmultidão: com aqueles óculos de sol horrorosos, olhavam, de nariz empinado, para o sol daquela manhã de Agosto.

E foi assim que, finalmente, me tornei uma pessoa normal.

Daí a importância desta crónica.


11 de Agosto de 1999

Nota: Este é um texto de ficção. Qualquer semelhança com factos ou pessoas reais é pura coincidência. Exceptuando, obviamente, o eclipse - que aconteceu mesmo, nessa manhã de Agosto.


António Vitorino

(texto inédito)

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