domingo, agosto 15, 2010

FOGO POSTO


I

Estou no centro do país, rodeado de incêndios.
Os pinheirais em fogo esbraseiam o ar.
Reguei o telhado e o quintal porque as velhas são muitas.
A vizinha cega, sem qualquer progresso, vai tocando o seu órgão Tornado 4.
A irmã apanha velhas, mostra-mas na mão,
apagadas ou parecendo ou quase,
e fala do carteiro - motorizada aqui,
saco acolá, sapato mais além -
que, presuntivo pirómano, a si mesmo se teria apagado nas águas do Tejo.


II

O aeroplano da lista vermelha é que semeia o fogo.

Von Richthofen - passe-montanha, óculos «à aviador», dentes cerrados -
é que vem semear o fogo no reino do verde pino.

Abatido em 18, ressurgiu
com o estampido do guarda-chuva que se abre
e - pano, arame, madeira - ganha altura
para, numa vrille desaparafusada,
vir castigar-nos com sua espada de fogo.

Disse Deus: - Ó aviador, vai-me a essa gente remota
e avia-lhes uns fogos que se vejam!

Polegar para baixo, Von Richthofen
incendiou milhares de hectares em Portugal.
Sua lista vermelha (laranja? limão?)
é vista com frequência na zona centro do país.

Disse Deus: - Basta. Já sinto calor na cara.

Este, que foi um herói ao serviço do Kaiser
- Cruz da Águia Vermelha
Cruz da Águia Negra
Cruz de Ferro -
descer, quando Deus quer, a incendiário de pinhais?

Credo, custa-me a crê-lo!



Alexandre O'Neill

As Horas Já de Números Vestidas (1981)
em Poesias Completas
ed. Assírio e Alvim, Lisboa, Novembro 2000

4 comentários:

Madalena Barranco disse...

António, querido, que sufoco com todo este fogo!! Espero que logo tudo volte ao normal e que a bendita água seja tema da todo poema...
Beijos.

Debaixo do Bulcão disse...

Há-de voltar a ser, Madalena! A água é dos melhores temas para a poesia!

Pata Negra disse...

Estás mas, julgo, de passagem! Eu estou cá desde que nasci! Arderam os pinheirais: perdi o estado de poesia!

Um abraço uh!UH!UH! mas não sou bombeiro

Debaixo do Bulcão disse...

nem eu! :)