Finalmente o autocarro chegou!...
Vem apinhado de gente. Entrei, mas não consegui ir além do condutor. Fiquei ao lado dele, deixei-me admirar e permiti-me sonhar com todos aqueles botões e mostradores cheios de números, daquele rico tablier. Os autocarros públicos têm botões para tudo, e luzes que avisam os botões sobre o estado de espírito do velho motor. É um ecossistema falível, mas deliciosamente perfeito...
À medida que os meus olhos desenhavam esta viagem pelo tablier do autocarro, fui reparando e retendo uma constante que marcava com persistência o percurso do meu olhar.
- “Sai às 5h”.
Esta frase repetia-se e espalhava-se atrevidamente por todo o tablier, ora acompanhando com graça as formas redondas dos botões; ora enchendo um qualquer espaço vazio no meio daquele enrendilhado eléctrico, um autêntico croché de circuitos vivos... ainda dizem que os homens não são prendados...
Repetiam-se sempre as mesmas palavras sem descanso, na paisagem do tablier. Da planície negra e fria gritavam frenéticas as letras desenhadas a branco, que pareciam agora impor uma verdade, como que uma máxima filosófica de uma qualquer organização secreta, infiltrada, subliminar, obscura, poderosa, vigorosa, secreta, mítica, secreta…
O transito circulava lento, e antes de ter reparado já estávamos cercados de carros e carretes cheios de vontade de chegar… onde? Para quê?... Chegar chega, apenas. Estamos no meio da bicha, e devagarinho lá vamos percorrendo mais 100 metros - menos 100 metros para o fim.
PARÁMOS!!!?!…
De repente o Sr. Condutor pára impiedosamente o autocarro, sem pensar na estrada, nas pessoas que esperam pessoas em casa ou nos carros do caminho.
O Sr. condutor aguardou um momento, sereno e confiante. Entretanto já se tinha formado atrás de nós uma bicha maior do que aquela que nos esperava à frente. Já estávamos sem dúvida a empatar…
Ainda com a mesma frase pintada na memória a latejar-me na ideia já confusa, e num acto de puro impulso inconsequente, vejo sair-me da boca num vómito compulsivo, insolente e quase provocador, a pergunta:
- “Sai às 5h?...”
Com isto, o homem levanta-se e sai violentamente do autocarro, abandonando tudo e todos com a incógnita surpreendente de tão inesperada acção.
No meio do silêncio que se vestiu e da pergunta, olhei sorrateiramente para o relógio… Marcava precisamente 5 horas. Em ponto!
Catarina Henriques (texto)
Miguel Seixas (ilustração)
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