Há muito tempo que ele tanto estranha a bondade como a maldade humana.
Foi por isso que escolheu viver num dos bairros mais feios e pobres da cidade.
Ali sabe que não é invejado nem bajulado por ninguém, nem tão pouco olhado de lado. É um indiferente, um quase invisível, como todos os outros habitantes, pretos, brancos, castanhos ou cor de rosa.
Passa a vida a pintar, porque é o que melhor faz e também o que mais o satiasfaz.
Tem compradores certas das suas aguarelas sobre Lisboa, de Alfama à Lapa. Os óleos - sem procura - enchem as paredes e apenas são conhecidos pelos raros amigos. Também pinta interiores de casas, quando os bolsos estão mais vazios e o empresário João Pintor precisa de reforços.
Achou estranho os aviões voarem tão baixo a meio da manhã, foi por isso que veio à janela. Não se assustou, como a senhora que descobriu imóvel no meio do passeio. Além de suar, tinha um ar assustado, como se pensasse que estava a rebentar uma guerra qualquer por aí.
Não achou piada ao medo da mulher idosa, muito menos ao barulho dos jactos, que conseguiram estremecer o cavalete e borrar ligeiramente a aguarela que estava a pintar.
Só à hora do almoço, quando passou pelo café, percebeu a "guerra" que se travava na Capital. Ao olhar de soslaio para a televisão, descobriu que o papa andava por aí, a fazer milagres.
O café estava mais cheio que o costume, para um dia da semana. Foi então que ouviu dizer que era feriado em Lisboa, graças ao tal rei dos católicos, que aparecia no filme com o presidente, mais angelical do que nunca.
Numa outra mesa, mais dada aos futebóis, os vizinhos preferiam o futebol à missa. Colocavam um tal Queirós no assador, enquanto faziam futurologia escura sobre o campeonato do mundo na terra do "Chaka Zulu". Não ganhavam um jogo. Queriam um tal Quim, um João Moutinho, um Martins, um Ruben qualquer coisa, um Makukula e ainda um Scolari na selecção. Rendeu-se ainda mais à sua ignorância, não sabia que havia portugueses com estes dois últimos nomes...
Antes de pagar o café, sorriu de felicidade por raramente ver televisão, ler jornais ou ouvir telefonia. A sua companhia continuava a ser o velho gira-discos e a música psicadélica dos anos sessenta e setenta.
Virou as costas ao filme de 12 de Maio e lá foi, para a sua casita, quase num outro país qualquer...
Luís Milheiro
Debaixo do Bulcão poezine
Número 38 - Almada, Setembro 2010
(Ilustração: desenho de André Antunes)
2 comentários:
Ah, Antonio, o Debaixo do Bulcão tem cada coisa linda!! Já estou virando fã de Milheiro.
Beijos
Madalena
P.S.: anunciei o belíssimo poezine 38 no posto do Flor de Morango (no fim (novidades da Moranguinha)
Olá, Madalena!
Concordo consigo. Este número ficou muito bom e todos os que nele participam estão de parabéns.
Também sou fã do Milheiro. Mas não quero que ele o saiba, para que não fique muito vaidoso, ehehehe!...
Agradeço a referência que faz no Flor de Morango.
Beijos e saudações poéticas
António Vitorino
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