Após o tempo aquático quando a chuva vela, vem então pela janela do meu quarto uma frescura nocturna, como se as horas condensassem todas as brisas do dia, num polvilhar repentino de luzes quietas e nítidas de um branco amarelado, ao fundo quase vermelho, testemunhas mudas do ruído, ao longe, dos veículos dispersos. Pela rua, onde tudo dorme alheio e igual, um silêncio móvel e vibrente torna agradáveis as árvores estáticas e as janelas envidraçadas no dormente pálido do ar. É de facto a noite, luzindo misteriosa, trazendo nos seus dedos vastos e antiquíssimos, um não sei quê de amargura e de alegria. Perdi o sono, lá para trás entre tantas ruelas difusas de multidão, e escrevo sem sonhar, companheiro anónimo do luar no lago da noite, esfarelando o tempo entre os dedos ávidos de sonho, olhando indiferente as migalhas do tédio em que a minha consciência se abandona.
No grande claustro deste mundo sossegado, o pórtico rendilhado das sensações abre o seu sorriso estelar, ao fim das lajes da procura, para outra sala abobadada. No prédio em frente, incadeado pela luz pérola de um grande candeeiro tricéfalo, um morador tardio aproxima-se do vidro baço da porta, preparando-se para subir. Os outros caem no esquecimento momentâneo da vida, até projectarem os punhos amarrotados e dançantes numa curva rápida a caminho da sua inércia primitiva.
De repente, tudo é morto, pavorosamente apodrecido pelo espasmo absurdo das coisas. Tudo é o mesmo igual, grande jazigo de vidro onde repousam os gestos diluídos e abstractos. E é, como um grande palácio de Tsarkoie de cartas de jogar, varrido ocamente pelo vento, metáfora inútil à luz submersa das cúpulas, derretidas sob o meu olhar demorado e vazante de tudo ser assim.
Antigamente, eu brincava no patamar recôndito daquele sétimo andar, onde a grande varanda traseira boiava ao luar real, concentrando nos meus olhos indagantes de criança. Parava, com as mãos rodopiantes, a pequena bola colorida e transparente, e olhava o escuro suspenso sobre o mural laranja, gozando a impressão dormente de ser uma estrela. Vivia assim o meu sonho secreto e a noite era límpida ao olhar-me através dos seus cabelos envolventes. E eu ficava, sentado contra a parede ao pé da porta, a luzir nos seus olhos misteriosos, como uma anémona arrancada ao fundo invisível do mar.
Antigamente, o vasto e morno real dos desertos perdidos, onde os meus passos se trocaram para este caminhar insubmisso pelas fragas da memória, onde as rochas dilatam fundas formas surreais, como chamas de pedra prolongando os olhos fossilizados para este lado da vida. E o que sou por fora, são essas ruínas arquétipos do antigamente, dispersas pela floresta de chuva dorecordar. E o que sou por dentro, descolora-se no sorriso cúmplice do maquinista da locomotiva velha em cima do móvel, partida da gare do ontem, entre as ervas velhas da linha de ferro, para a cúpula da chegada do futuro, onde não sei quem era, e minto quem não sei ao certo se fui eu.
E esta noite vegetativa, segredo vácuo e caminhante pelo rolo dos tempos, e a grande inércia indecisa que chega dos quatro cantos do quarto, são grandes esferas de silêncio com árvores e luzes lá dentro, recolhidas pela rua deserta até ao ponto de alguma espécie de infinito oculto para a paisagem.
Ontens, hoje, horas, noite, pequenas secretas brincadeiras felizes de terem sido, espuma no espaço, que se dissolve na percepção de terem sido notadas. Caixa de vidro rachado das nevralgias possíveis, traço rápido dos faróis diagonais e vastos no negro modular de tudo, onde eu, por um acontecimento casual da vida, mergulho recolhido a um canto, como um esquecido frasco vazio...
Quem me olho? Que sinto? Tudo dorme como um grande lago estagnado...
António José Coutinho
Debaixo do Bulcão poezine
Número 12 - Almada, Janeiro de 1999
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