sexta-feira, outubro 17, 2008

"A poesia" - uma reflexão sobre criação literária, em finais do século XIX...


(Texto assinado por A. de Lamartine, em "Jornal do Domingo", Outubro de 1887)

«Muitas vezes ouvi perguntar: O que é a poesia? Tanto valera dizer, na minha opinião: O que é a natureza? O que é o homem?
Nada se define, e esta impotencia de definição é precisamente a suprema belleza de tudo quanto é indefinível.
Deixemos pois ao gramatico ou ao theorico que defina, se podér, a poesia; nós dizemos pura e simplesmente a verdadeira palavra: mysterio da linguagem.

A poesia, tal como a concebemos, não é realmente nada do que dizem; não é rytmo, rima, canto, imagem, côr, figura ou metaphora no estylo; não é sequer verso; é tudo isso na fórma, ainda que tambem prescinda d'ella; é porém ainda mais que tudo isso: é a poesia.


Ha em todas as coisas humanas materiaes ou intellectuaes, uma parte ethérea, impalpavel, transcendente, e, por assim dizer, atmosphérica, que parece corresponder mais especialmente á natureza divina do nosso sêr.
O homem, por effeito de um instincto occulto, mas universal, parece têr sentido, desde o princípio dos tempos, a necessidade de exprimir em linguagem differente as coisas distinctas. Collocado, para sentil-as e exprimil-as, nos limites d'essas duas naturezas humana e divina que se tocam e se confundem n'elle, o homem não conserva por muito tempo a mesma linguagem para exprimir o humano e o divino das cousas. A prosa e a poesia repartiram a sua linguagem, como repartiram a creação. O homem fallou das cousas humanas e cantou as cousas divinas. Á prosa, coube em partilha a terra e tudo o que com ella tem relação; a poesia teve o céu e tudo o que passa além da humanidade na impressão das cousas terrestres. N'uma palavra, a prosa foi a linguagem da razão, a poesia a do enthusiasmo ou do homem elevado pela sensação, pela paixão e pelo pensamento ao seu mais alto poder de sentir e de exprimir. A poesia é o divino da linguagem.


Quereis uma prova d'essa distincção, tirada do facto e não da theoria? Observae desde a origem das litteraturas o que pertenceu á prosa e o que foi do domínio da poesia.

Em todas as línguas, o homem fallou e escreveu em prosa as cousas necessarias á vida physica ou social: agricultura, política, eloquencia, historia, sciencias naturaes, economia publica, correspondencia epistolar, conversação, memorias, polemicas, viagens, theorias philosoficas, negocios publico, negocios particulares, tudo o que pertence puramente ao domínio da razão ou da utilidade foi cedido, sem deliberação, á prosa.
Pelo contrario, em todas as linguas, o homem cantou geralmente em verso a natureza, o firmamento, os deuses, a piedade, o amor, ess'outra piedade dos sentidos e da alma, as fábulas, os prodigios, os heroes, as façanhas ou as aventuras imaginarias, as odes, os hymnos, os poemas, finalmente tudo o que está um ou cem graus acima do exercicio puramente usual e racional do pensamento.
O verbo familiar tornou-se prosa; o verbo transcendente encarnou-se nos versos. Um discorreu, o outro cantou.
Porque razão existe semelhante differença n'estes modos diversos da expressão humana? Quem ensinou ou impoz ´s humanidade que devia escrever estas cousas em prosa e cantar aquellas em verso? Ninguem. O mestre de tudo, o fundador e o legislador das fórmas e da expressão humana, não é senão o instincto, essa revelação surda mas imperiosa e por assim dizer fatal no nosso ser e em todos os sêres. Analysemo-nos a nós mesmos:
O homem sensitivo e que pensa é um instrumento sonoro de sensações, de sentimentos e de idéias. Cada corda d'este instrumento, afinado pelo Creador, experimenta uma vibração e produz um som proporcionado á emoção que a natureza sensivel do homem imprime no seu coração ou no seu espírito, pela commoção mais ou menos forte que recebe das coisas exteriores ou interiores.
Á excepção da extrema dor, que quebra as cordas do instrumento, e que lhes arranca um grito inarticulado, grito que não é prosa nem verso, canto nem palavra, mas um despedaçar convulsivo do coração que estala, o homem serve-se, para exprimir a sua commoção, de uma linguagem simples, habitual e afinada como ella.


Quando, pelo contrario, a commoção é extrema, exaltada, infinita; quando a imaginação do homem se dilata e vibra n'elle até ao enthusiasmo; quando a paixão, real ou imaginaria, o exalta; quando a imagem do bello na natureza ou no pensamento o fascina; quando o amor, a mais melodiosa das nossas paixões, porque é a mais sonhadora, o obriga a inspirar, invocar, adorar, sentir, chorar o que ama; quando a piedade o enleva nos seus sentidos e lhe faz entrevêr lá longe nos ceus, a belleza suprema, o amor infinito, a origem e fim da sua alma, Deus! e quando a contemplação extatica do Sêr dos sêres, lhe faz esquecer o mundo dos tempos pelo mundo da eternidade; finalmente, quando nas suas horas de descanço na terra, se desprende, nas azas da sua imaginação, do mundo real para perder-se no mundo ideal, como um navio que entrega ao vento o seu velame e que se separa insensivelmente da praia para o imenso oceano; quando se gosa da innefavel e perigosa voluptuosidade de sonhar com os olhos abertos, então as impressões do instrumento humano são tão fortes, tão profundas, tão piedosas, tão infinitas nas suas vibrações, tão sonhadoras, tão superiores ás suas impressões ordinarias, que o homem procura naturalmente para exprimil-as uma linguagem mais penetrante, mais harmoniosa, mais sensivel, mais metaphorica, mais levantada, mais musical, que a sua lingua, em ordinario, e inventa o verso, o canto da alma, como a musica inventa a melodia, o canto do ouvido; como a pintura inventa a côr, o canto dos olhos; como a esculptura inventa os contornos, o canto das formas; porque, cada arte canta para um dos nossos sentidos, quando o enthusiasmo, que é a commoção no seu mais alto gráu, se apodera do artista.

Só a poesia, que é a arte das artes, canta para todos os sentidos completamente e para a alma centro divino e immortal de todos os sentidos.
Logo, a uma impressão transcendente, corresponde tambem um modo transcendente de exprimil-a. Eis, a nosso vêr, toda a origem e explicação do verso, essa sublimidade da expressão, esse verbo do bello, não só no pensamento, mas ainda no sentimento e na imaginação. »

A. de Lamartine





Notas: Este texto de finais do século 19 - aqui reproduzido de acordo com a ortografia da época - encontra-se no "Jornal do Domingo" (2ª série - Anno I - nº 33). Tratava-se de uma publicação semanal, ilustrada, que dava particular destaque a artigos sobre literatura e arte(s), mas continha também textos de reflexão política, bem como notícias e "curiosidades" sobre avanços das ciências e das tecnologias da época em questão. O director era M. P. Chagas (Pinheiro Chagas?). Quanto ao Lamartine que assina este artigo, poderá tratar-se do escritor francês Alphonse Lamartine (embora, à data desta publicação já ele tivesse falecido)? Se algum leitor deste blogue tiver informações que queira partilhar connosco, não se acanhe: envie-nos a sua contribuição para
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António Vitorino

1 comentário:

Madalena Barranco disse...

António, eu não conhecia esse texto de Lamartine que me encheu os olhos de verdadeiro sentido poético. Ah, a poesia é de fato indefinível...

Beijos.